terça-feira, 23 de abril de 2024

A GUERRA NO DONBASS

O jornalista Bruno Amaral de Carvalho publicou há alguns dias um livro sobre a sua experiência de repórter de guerra na Ucrânia, A Guerra a Leste. Durante oito meses, o autor fez a cobertura da guerra no Donbass, sendo durante muito tempo o único jornalista português no teatro do conflito, do lado "separatista". Mais tarde haveria de juntar-se-lhe o jornalista Luís Peixoto, da Antena 1.

Em todas as guerras é fundamental conhecer os relatos de ambas as partes envolvidas nas hostilidades, a fim de se poder ajuizar da objectividade dos mesmos, já que em confrontações militares a primeira vítima é sempre a verdade.

Acontece que desde a invasão da Ucrânia, e devido à insuportável Ursula ter determinado a proibição na União Europeia de todos os canais russos de difusão de notícias, passámos a ter apenas conhecimento da narrativa “ocidental” divulgando a “verdade oficial”, ainda que soubéssemos (sabe-se sempre) que aquela não correspondia inteiramente à “verdade dos factos”.

Este livro devolve-nos, com grande lucidez, uma informação equilibrada, narrando aquilo que já suspeitávamos, mas agora com informação alicerçada numa testemunha ocular dos acontecimentos. Será essa informação isenta? Decorre da leitura do livro que ela é muito mais consentânea com a realidade do que o relato que nos tem sido veiculado desde Fevereiro de 2022.

A operação militar russa foi iniciada há mais de dois anos e esta obra refere-se tão só a oito meses de combates, mas permite avaliar a veracidade de muitos acontecimentos e a forma distorcida como nos foram apresentados.

Tenho dito e escrito que esta guerra é, mais do que qualquer outra, uma guerra inútil, onde o verdadeiro sacrificado é o povo ucraniano. E que o número de mortos ultrapassa largamente o que seria razoável (e nenhum morto seria razoável) para os interesses em questão.

O estabelecimento das fronteiras da Ucrânia foi efectuado de forma arbitrária em circunstâncias profundamente distintas das actuais. Quando da implosão da União Soviética não houve a preocupação de proceder ao reajustamento das mesmas de acordo com a nova situação estratégica, agora radicalmente diferente.

O Donbass foi incorporado na Ucrânia em 1918, por vontade de Lenin e contra a opinião de alguns dos seus colegas no governo da União Soviética, devido a ser uma importante zona industrial que equilibraria a extensa superfície agrícola do resto do país.

Além das centenas de milhares de mortos, feridos, estropiados, das destruições de casas e de instalações civis, e obviamente militares (para não falar dos milhões de exilados noutros países desde o começo da invasão, ou mesmo antes) acresce uma consequência trágica que é a desavença das famílias, com a quebra de laços afectivos que perdurará por longo tempo.

A Ucrânia é um mosaico étnico, religioso, linguístico e ideológico que pôde funcionar regularmente durante o período soviético. O desmoronamento da URSS foi, nas palavras de Vladimir Putin, a “maior catástrofe geopolítica do século XX”. A guerra na Ucrânia é uma das consequências.

Estou certo de que o cumprimento dos Acordos de Minsk, celebrados entre a Rússia e a Ucrânia, com a participação da França e da Alemanha, teria evitado esta guerra. Esses Acordos estipulavam, no essencial, duas coisas: a não adesão da Ucrânia à NATO (o que é compreensível em termos geoestratégicos) e a regionalização do país (o que permitiria nas zonas de Leste a utilização da língua russa, a manutenção dos antigos costumes, a obediência ao Patriarca Ortodoxo de Moscovo, etc.) Note-se que Volodymyr Zelensky promoveu a criação de um Patriarcado Ortodoxo autónomo em Kiev, para se subtrair à autoridade espiritual do Metropolita moscovita.

A guerra que se trava na Ucrânia é, como toda a gente há muito tempo percebeu, uma guerra entre a Rússia e o Ocidente colectivo, em que os ucranianos são utilizados como “mão-de-obra” descartável ao serviço de interesses que já nem são inconfessáveis. É por isso profundamente imoral.

O que custa a compreender neste conflito, que não data de 2022, nem sequer de 2014 (a revolta de Maidan) mas desde a revolução laranja de 2004, é a submissão total da Europa aos negócios norte-americanos. Nunca o Velho Continente abdicara por completo da sua soberania, embarcando numa aventura de contornos mal definidos e envolvendo riscos de proporções inimagináveis. Apesar da propaganda sistematicamente difundida pelos Governos “ocidentais”, os povos europeus mostram-se contudo cada vez mais cépticos em continuar a acreditar na versão oficial.

Até quando abusarão eles da nossa paciência, e das nossas vidas?

 

domingo, 7 de abril de 2024

OS MALEFÍCIOS DOS ESTADOS UNIDOS

Em 2002, o jornalista e professor Peter Scowen (n. 1959) publicou Black Hole of America, que foi editado nesse mesmo ano em português com o título O Livro Negro da América. Pesquisando na Amazon, este título desapareceu, existindo um outro livro do autor, com o título Rogue Nation: The America the Rest of the World Knows, editado em 2003, e que suponho ser a mesma obra com outra designação e eventualmente actualizada. Mas continuam a estar disponíveis, nos vários sites da Amazon, traduções do livro original, pelo menos em francês e em italiano.

Nesta obra, o autor analisa as intervenções políticas, militares, económicas, sociais, directas e indirectas, dos Estados Unidos em diversos países, com a exclusiva finalidade de afirmar ou consolidar os interesses americanos, ou aquilo que as administrações estadunidenses (democratas ou republicanas) supõem ser os seus interesses. Às vezes enganam-se. 

O texto de Peter Scowen está exaustivamente documentado com a inclusão, em apêndice, de todas as fontes que suportam as suas afirmações.

O autor desenvolve, com detalhe, as intervenções americanas na Nicarágua, Honduras, Guatemala e Chile. Sem esquecer o Vietname, a Malásia, o Camboja, o Sudão. Dedica especial atenção ao bombardeamento (inútil) de Hiroshima e Nagasáqui, a primeira (e até hoje única) vez que foi utilizada uma bomba nuclear. Alude à interferência no Irão para depor Mossadegh. Refere a guerra da Coreia e a guerra (a primeira) do Golfo. E o incentivar da guerra entre o Iraque e o Irão. 

São mencionados os acontecimentos de 11 de setembro de 2001 e a Cruzada contra o Mal desencadeada por George W. Bush. E a forma como o terrorismo, agora já não o comunismo, justificou levar a cabo no estrangeiro actividades muito questionáveis. 

Dada a data em que o livro foi escrito, o autor menciona a invasão do Afeganistão mas não a do Iraque, que só teve lugar em 2003 e propiciou a criação do "Estado Islâmico". Nem a da Líbia, nem a interferência na Síria ou o apoio às chamadas "primaveras árabes". 

O fundamentalismo americano, só comparável ao fundamentalismo islâmico, levou Bush a considerar que o Irão, o Iraque e a Coreia constituíam um Eixo do Mal. A propagação das igrejas baptistas, metodistas e demais seitas evangélicas contribui largamente para esta mentalidade falsamente puritana que se julga detentora da única verdade e da sua superioridade moral sobre os restantes países do mundo.

É dedicado um capítulo especial à análise das eleições presidenciais americanas de 2000, cujo processo eleitoral foi manipulado por ambos os candidatos, George W. Bush e Al Gore, ainda que pareça ter sido Al Gore o vencedor e não o filho do ex-presidente George Bush. O processo é descrito minuciosamente e apontadas todas as deficiências da máquina eleitoral americana, susceptível das mais assombrosas manobras. 

O autor debruça-se ainda sobre a maneira como o estilo de vida e pensamento norte-americanos se têm introduzido progressivamente nos outros países, através do cinema e da televisão, da música e da forma de vestir, das tecnologias e da alimentação. É recordado, a propósito, o livro de Benjamin R. Barber (1995), Jihad vs. McWorld: How Globalism and Tribalism Are Reshaping the World. Mas existem muitas obras sobre este tema. Convém citar este parágrafo do livro, página 231: «A única defesa contra este imperialismo cultural é o nacionalismo, que tanto pode expressar-se no benigno e ligeiramente hipócrita antiamericanismo francês ou, de uma forma muito mais perigosa, no enraivecido fanatismo racial de Usama bin Laden e do defunto e nada lamentado governo talibã do Afeganistão. No mundo de George W. Bush, as duas únicas escolhas possíveis são entre a McDonald's e bin Laden; entre o bem do capitalismo e da globalização e o mal do terrorismo; entre o acesso sem restrições dos gigantes dos media americanos às cadeias de televisão e às salas de cinema estrangeiras e o Ministério do Vício e da Virtude dos talibãs.»

Poderia transcrever centenas de parágrafos, poderia mesmo transcrever integralmente o livro mas tal não é possível. Tendo sido publicado há vinte e dois anos este livro mantém plena actualidade e só é pena que, dado o intervalo de tempo, não estejam registados os acontecimentos das últimas duas décadas como, por exemplo, o conflito na Ucrânia que, na sua forma militar, já se arrasta há mais de dois anos. 

Para os interessados nas tentativas (grande parte com êxito) dos Estados Unidos, desde a Segunda Guerra Mundial, para controlarem o planeta, impondo uma só verdade, o livro em apreço (muito bem escrito, e bem traduzido) é de inestimável utilidade. 


quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

AQUANDO DAS COMEMORAÇÕES DO 75º ANIVERSÁRIO DA DESCOBERTA DE UGARIT

Em Outubro de 2004 teve lugar no Museu das Belas-Artes de Lyon uma notável exposição comemorativa do 75º aniversário do início das escavações (1929) em Ras Shamra (Síria), sítio que foi a capital do célebre reino de Ugarit. Em 1928, um lavrador, trabalhando a terra com o seu arado, descobrira a pedra de um túmulo, o que imediatamente alertou as autoridades para a presumível importância desse achado arqueológico. As pesquisas iniciaram-se no ano seguinte, a cargo de uma missão francesa, que se tornou franco-síria em 1999, e estava-se longe de conhecer o valor dessa descoberta. Passados 75 anos foi possível, em 2004, realizar uma exposição para apresentar os resultados desse extraordinário trabalho, mostrando as principais peças entretanto depositadas no Museu do Louvre, no Museu Nacional de Damasco, no Museu Nacional de Alepo e nos museus das cidades sírias de Latáquia e de Tartus e ainda no Departamento do Médio-Oriente dos Museus Estatais de Berlim.

O catálogo, cuja capa se reproduz acima, é uma preciosa edição artística, magnificamente ilustrada, apresentando as diversas peças constantes da exposição, que foi organizada por Yves Calvet, co-director da Missão Arqueológica de Ras Shamra-Ugarit e Geneviève Galliano, conservadora do Museu das Belas-Artes de Lyon.

Como escrevi em post anterior, os habitantes do reino de Ugarit eram inicialmente pastores e agricultores mas depois também construtores e artífices, pescadores e negociantes e a partir do porto de Mahadu, hoje Minet el-Beida, praticava-se um importante comércio marítimo com o Egipto, Chipre e as ilhas do mar Egeu. Comércio igualmente desenvolvido por via terrestre com os vizinhos reinos de Mukish, Siyannu e Amurru e mesmo com os mais distantes Império Hitita e Mesopotâmia ou com os países do Levante: Biblos, Beirute, Tiro.

O palácio real da capital com os seus anexos ocupava mais de 10 000 metros quadrados, os principais templos, de Baal e de Dagan, eram notáveis, os vestígios das muralhas da cidade testemunham a qualidade das fortificações.

O fim de Ugarit foi súbito e brutal. Os principais edifícios mostram vestígios de incêndios mas nenhum texto nos revela o que então aconteceu. A utilização da escrita desapareceu na região durante alguns séculos após estes acontecimentos. A destruição terá ocorrido no começo do século XII AC, devida porventura às errâncias dos chamados "Povos do mar". Ras Shamra conheceu algumas reocupações curtas e pouco extensas nos séculos V e IV AC., revelando elementos arquitecturais persas e cerâmicas gregas.

A primeira pessoa a investigar o sítio de Ugarit (a Síria estava em 1929 sob mandato francês) foi Claude Fréderic-Armand Schaeffer (1898-1982), professor no Collège de France e especialista da pré-história. As escavações começaram em Minet el-Beida e prosseguiram depois em outras zonas. Uma parte das descobertas encontra-se nos museus da Síria e outra parte foi levada para França, achando-se no Museu do Louvre, partilha efectuada de acordo com a lei das antiguidades então em vigor. Esta lei foi suprimida em 1948 e desde esta data todos os achados foram conservados na Síria: no Museu Nacional de Damasco (1948-1965), no Museu Nacional de Alepo (1966-1987), no Museu de Latáquia (desde 1988).

«Les grandes tablettes en argile et les outils en bronze découverts sur l'acropole présentaient un système graphique cunéiforme nouveau. Les efforts de H. Bauer, E. Dhorme et Ch. Virolleaud en donnèrent très vite la clé: en 1930, ils reconnaissaient un système graphique alphabétique servant à noter une langue ouest-sémitique apparentée à l'hébreu, au phénicien, à l'arabe, etc. Les courtes inscriptions des outils votifs étaient des dédicaces du "chef des prêtres", et les longs textes des tablettes, des poèmes mythologiques dont le héros principal était le dieu Baal, le dieu protecteur du royaume. Cette découverte eut un retentissement extraordinaire dans la communauté scientifique internationale. Outre l'apparition d'une langue nouvelle, le site de Ras Shamra faisait connaître le système alphabétique d'où dérivent, à travers l'intermédiaire du phénicien, les alphabets grec puis latin, dont l'utilisation s'est répandue jusqu'à nous sur la terre entière. Et, d'autre part, on voyait sortir de l'obscurité la civilisation dite "cananéenne" dans laquelle l'univers biblique prenait une grande partie de ses racines, avec ses mythes, sa littérature poétique... Ces deux éléments mis au jour dans ce qui s'est révéllé une cité riche et raffinée, en relation avec le reste du monde oriental du II millénaire, ont rapidement fait de Ras Shamra-Ougarit un site majeur de Syrie.» (pp. 73-4)

A exploração do local prosseguiu até 1939, altura em que as pesquisas foram interrompidas devido à Segunda Guerra Mundial. Depois da independência da Síria, em 1946, a missão regressou ao sítio em 1948, mas só em 1950 foi concedida autorização para continuar as escavações sistemáticas. H. de Contenson sucedeu a Schaeffer em 1971 e manteve-se à frente da missão até 1974. Em 1975-1976 dirigiu os trabalhos J.-C. Margueron. A partir de 1977 houve uma equipa dirigida por Jacques Lagarce e Adrian Bounni. De 1978 a 1998 Marguerite Yon foi responsável pela Missão, que se tornou franco-síria, em 1998, assumindo a direcção Yves Calvet e Bassam Jamous. Quando eu visitei Ugarit em 2006 conheci pessoalmente o doutor Yves Calvet, com quem troquei impressões sobre as escavações. A partir dessa data, e tendo eclodido a guerra na Síria, nada mais soube acerca deste notável sítio arqueológico.

Vejamos agora as línguas e as escritas de Ugarit.

«Les documents épigraphiques attestent la présence de huit langues (ougaritique, akkadien, hourrite, hittite, louvite, sumérien, égyptien, "chypro-minoen"). Mais, outre la langue vernaculaire, l'ougaritique, seules deux étaient sans doute parlées de manière courante.

En effet, langues orales et langues écrites ne se recouvraient pas. Le sumérien, qui n'était plus parlé depuis longtemps, apparaît seulement à titre de réference culturelle, les grands textes littéraires de la tradition mésopotamienne faisant partie du bagage de tout scribe bien formé. Les hyéroglyphes égyptiens constituent la dédicace de plusieurs objets envoyés en cadeaux: ces importations ne traduisent  nullement l'emploi de la langue égyptienne sur place. Parler de "chypro-minoen" masque en fait l'ignorance dans laquelle nous sommes de la langue notée par cette écriture hourrite: hourrite, un dialecte égéo-chypriote ou arcado-chypriote?

La situation du hittite ou du louvite est différente: ces idiomes sont très peu représentés dans les documents (moins de dix textes en hittite ont été mis a jour). Pourtant, ils étaient ceux des suzerains du royaume d'Ougarit et d'importants négociants: il est difficile d'imaginer qu'ils aient renoncé à leur emploi dans leurs discussions. Mais même pour eux, écrire impliquait à Ougarit que ce fût en akkadien. 

La présence d'une colonne propre au hourrite dans certaines listes lexicales multilingues utilisées dans les scriptoriums ougaritains témoigne de la pratique locale de cette langue. Dans les textes, elle est cantonnée à des domaines très spécifiques: des partitions musicales et les parties lyriques des liturgies ougaritaines. Elle entre dans la composition d'écrits bilingues, comme un recueil de sentences akkado-hourrite ou des rituels d'offrandes ougarito-hourrites. De nombreux personnages importants de la Cour portent des noms hourrites. Sans doute cette langue était-elle employée par une partie de la population d'Ougarit.

Prés de la moitié des textes d'Ougarit sont rédigés en akkadien, langue mésopotamienne. Cela n'indique cependant pas quelle était sa place dans la vie quotidienne. Et, malgré la parenté de leurs langues, il n'est pas sûr qu'akkadophones et ougaritophones se soient compris. L'akkadien était la langue par excellence des relations internationales; il ne servait pas pour autant d'idiome "passe-partout" pour les voyageurs et les étrangers au royaume.

L'énumération de ces huit langues masque en revanche un phénomène linguistique important: l'existences de sabirs propres à différents métiers, que seul de maigre indices laissent deviner.

À la complexité de la situation linguistique s'ajoute la diversité des écritures: cinq systèmes sont attestés, mais de manière très inégale: moins d'une dizaine de tablettes sont inscrites en caractères linéaires chypro-minoens; les hiéroglyphes louvites apparaissent à côté des cunéiformes dans des sceaux digraphes, tandis qu'une centaine d'objets (scarabées, épée, vases, stèles...) portent des hiéroglyphes égyptiens.

Alphabet ougaritique (notant essentiellement la langue ougaritique, mais aussi quelques textes hurrites) et cunéiformes mésopotamiens (pour l'akkadien et quelques textes hourrites) se partagent la plupart des documents épigraphiques. Il existe aussi quelques textes digraphes (à ume trame ougaritique viennent s'ajouter des indications ou un résumé en cunéiformes syllabiques) témoins de la très grande aisance des scribes à passer d'une langue à l'autre, d'une écriture à l'autre.» (p. 81)

Os textos encontrados podem classificar-se nos seguintes grupos: textos administrativos, actos jurídicos, correspondência local (quase toda em ugarítico), correspondência internacional (a maior parte em acádio), literatura lexical, textos religiosos e arquivos.

Pela leitura dos textos descobertos podemos conhecer a vida política e diplomática do pequeno reino de Ugarit e as suas relações com os reinos limítrofes: Siyanu e Amurru. Igualmente com o Império Egípcio e o Império Hitita, e ainda com regiões mais distantes do Levante ou com as cidades costeiras fenícias ou cananeias de Biblos, Beirute, Sidon, Tiro, Acre, Ashdod ou Ascalon.

O comércio foi uma das principais actividades de Ugarit, que foi mesmo uma placa giratória do comércio internacional. As trocas que se encontram mais bem documentadas são as que se referem a objectos de cerâmica, localmente produzidas ou importadas, especialmente de Chipre mas também das ilhas do mar Egeu. 

O catálogo documenta pormenorizadamente o que teria sido o palácio real de Ugarit e o seu precioso mobiliário e descreve o modo de vida quotidiano da população local. 

As primeiras sepulturas descobertas na região, no caso em Minet el-Beida, foram interpretadas como pertencendo a uma necrópole, mas com a continuação das escavações verificou-se que, como era corrente no Próximo Oriente, estavam situadas debaixo das casas. Embora os restos humanos raramente estivessem conservados, foi possível constatar que os túmulos eram colectivos e podiam abrigar diversas gerações. O uso de sarcófagos revelou-se excepcional. 

Baal

No campo da religião, Baal, deus das Tempestades era o deus principal do reino, mas também El, o pai dos deuses era objecto de grande veneração, tal como Maat, sua irmã, Mot, deus da Morte, Yam, deus do Mar, Kothar-Khasis, engenheiro-arquitecto, Athirt, esposa de El, Shapash, deusa solar, Athtart e Akhtar, manifestações feminina e masculina da estrela da manhã e da noite, etc. O panteão de Ugarit era contudo mais vasto. Além do Baal de Saphon incluía mas seis Baal sem epíteto e Dagan, um deus muito importante. Não cabe aqui a enumeração de todos os deuses da região. 

El
El

Encontraram-se em Ras-Shamra pelo menos cinco edifícios que teriam servido como templos. Os mais importantes eram dedicados a Baal e a Dagan. Estima-se que estes templos datem do sécuo XV AC. 

Registámos aqui, resumidamente, alguns dos aspectos mais importantes da civilização de Ugarit, como descritos no notável catálogo publicado por ocasião da grande exposição em Lyon.


sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

NO REINO DE UGARIT

Comprei este livro, Ougarit - La terre et le ciel (2004), logo após a minha vista a Ugarit, em 2006. Trata-se de uma recolha de textos (prosa e poesia) de vários autores, entre os quais Marguerite Yon, que dirigiu a missão de pesquisa em Ugarit entre 1978 e 1998, Salah Stétié, escritor e embaixador do Líbano em diversos países ou Myriam Antaki, escritora síria francófona e mulher de George Antaki, cônsul honorário de Portugal em Alepo. A edição é prefaciada por Yves Calvet, director das pesquisas em Ugarit desde 1999 e que tive o prazer de conhecer pessoalmente quando visitei as ruínas. Ignoro o que aconteceu às investigações arqueológicas depois do eclodir da guerra na Síria.

Folheando agora o livro, apraz-me registar meia dúzia de aspectos. 

A região foi habitada por pastores e agricultores desde o VIII milénio AC. mas os vestígios até hoje encontrados datam, no essencial, do século XIV ao século XII AC., o período de grande apogeu do Reino de Ugarit. As pesquisas em Ugarit (Ras el-Shamra na designação árabe do local) começaram em 1929, depois de um lavrador, em 1928, ter posto a descoberto, ocasionalmente, com o seu arado uma pedra antiga.

O alfabeto ugarítico, o primeiro conhecido na História, é composto de 30 caracteres. A língua ugarítica tinha utilização interna no reino, mas nas relações internacionais era praticado o acádio, língua utilizada na Assíria e em Babilónia. Era nesta língua que se processava a correspondência de Ugarit com o faraó do Egipto e com o "rei-Sol" dos hititas.

As inscrições eram gravadas em tabuinhas de argila, e nessa forma chegaram ao nosso conhecimento. Através delas sabemos muitas coisas sobre a vida quotidiana no reino e as relações internacionais, especialmente no período decorrente entre o século XIV e o século XII AC. O mais célebre rei de Ugarit terá sido Niqmad (1210-1200 AC) cujo nome é mencionado muitas vezes nas inscrições recolhidas. O reino de Ugarit começou a extinguir-se nos princípios do século XII AC, minado por crises internas e por causa das incursões dos "povos do mar", que também determinaram o fim do império hitita.

Existe no Museu Nacional de Damasco uma pequena tabuinha contendo o alfabeto de Ugarit, de que possuo uma reprodução.

Na cidade de Ugarit, a capital, existiam vários palácios, templos, monumentos, residências senhoriais e todo o tipo de construções próprias de uma grande cidade da época. A população dividia-se em dois grupos: os "homens do rei", aqueles que se encontravam ligados ao palácio e os "filhos de Ugarit", restantes habitantes da cidade, estrangeiros e escravos. Temos notícia de uma importante aristocracia e de gente ligada ao mundo dos negócios. 

Os templos principais eram dedicados ao deus Baal (Bel), o deus das tempestades e da chuva, e ao deus Dagan (Dagon), deus da agricultura. À volta de Baal, objecto de grande veneração, existia todo um panteão, à frente do qual se encontrava El, o pai dos deuses, acompanhado da sua "parceira" e irmã Anat, de Yam, deus do mar e de Kothar-Khasis, o deus engenheiro e arquiteto.

Por curiosidade reproduz-se uma imagem do deus El que, como referimos em post anterior, esteve na base do nome Israel (Isra+el), já que era o principal deus dos povos do Levante, e que mais tarde foi metamorfoseado em Yahvé.

Voltaremos oportunamente a escrever sobre Ugarit.


quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

A BÍBLIA TINHA OU NÃO RAZÃO?

Devo ao Miguel Castelo Branco a notícia da recente publicação do livro A Bíblia tinha mesmo razão?, do padre Francisco Martins, S.J., professor da Pontificia Università Gregoriana, de Roma. Sobre este tema, Werner Keller publicara em 1955 Und die Bibel hat doch recht, que foi editado em português com o título A Bíblia tinha razão, sem menção de data, mas possivelmente nos anos sessenta, e que comprei e li na ocasião.

A obra de Werner Keller procura conciliar a narrativa bíblica com as fontes históricas, numa altura em que começara uma investigação arqueológica sistematizada nas regiões abrangidas pelo relato do Livro. Mas, decorrido mais de meio século, a perspectiva é hoje bem diferente. As descobertas ocorridas neste período são de molde a suscitar mais dúvidas do que certezas. Por isso, a recém-publicada obra de Francisco Martins apresenta no título um ponto de interrogação.

Procede o autor a uma detalhada indicação das últimas descobertas arqueológicas e também de manuscritos, intercalada com várias citações e observações pessoais quanto ao valor a atribuir aos textos bíblicos. A abundância de pormenores e a forma como as matérias se encontram arrumadas dificultam por vezes a inteligibilidade da narrativa que ganharia em permitir uma leitura mais linear. O livro segue, lamentavelmente, o sinistro Acordo Ortográfico 90 mas, ainda pior, é o aportuguesamento de muitos nomes já consagrados em português e noutras línguas europeias. Não havia necessidade de grafar Ramessés em lugar de Ramsés, mas escrever Cadés para designar o local da célebre batalha de Kadesh começa a ser apenas acessível a quem já possua conhecimentos na matéria. E podia citar muitos outros exemplos. Também é obviamente notória a falta de um índice onomástico. 

Não é possível proceder neste espaço a um comentário circunstanciado das observações do autor, pelo que ficaremos por umas simples notas. A obra começa por analisar as figuras de Abraão, Isaac, Jacob e José, cuja existência histórica considera duvidosa, e mesmo a de Moisés «sobre o qual não nos chegou qualquer testemunho extra-bíblico» (p. 101), embora o nome seja de origem egípcia.

A mais antiga referência ao nome de Israel encontra-se na estela do faraó Merneptá, datada de cerca de 1207 AC.  Segundo o autor o deus El era venerado no Próximo Oriente e a transformação em Israel poderá significar a sua individualização para os hebreus. Ao princípio, terá coexistido com outros deuses até à consagração do monoteísmo. Também não é verdade que os israelitas sejam os hicsos, como por vezes se propõe. E o livro Êxodo é uma invenção literária. Terá havido durante muitos anos um vai-vem de israelitas de e para o Egipto e não há provas de uma imensa migração daquele país para Canaan. As hipotéticas datas "históricas" da Bíblia são inconciliáveis com os documentos históricos, papiros ou pedras. «Por volta de 1150 AC. ou, o mais tardar, 1130 AC. , o Egipto foi forçado a abdicar definitivamente do que foram mais de quatro séculos de domínio absoluto ou quase absoluto sobre a região do Levante e os reinos, cidades e povos que ali habitavam. (...) Ora, para o "Israel" da estela de Merneptá, como para os outros grupos étnicos e não só que ocupavam o sul do Levante, este acontecimento maior da História das relações entre o Levante e o Egipto no segundo milénio AC. deve ter sido vivido como uma "libertação", isto é, como o extrair-se de uma situação de sujeição político-económica ("escravatura"), que havia durado vários séculos.» (pp. 108-9)

Há depois a revelação do nome bíblico de Deus, Yahvé (ou Yhwh, Yhw, Yh, Yahu, Yah), segundo o Êxodo. A palavra hebraica é conhecida como tetragrama (Yhwh) e é substituída em algumas edições da Bíblia por "Senhor", norma que remonta à Antiguidade e que reflecte uma espécie de tabu religioso, uma regra de respeito pela sua sacralidade (p. 115). O facto do hebraico não possuir vogais deu origem a várias incorrecções na vocalização, como Yehowah (Jeová), que é historicamente uma grafia incorrecta (p. 116).

«(...) a divindade chamada "Yahvé" começou por se apresentar com um outro nome: "El Chadai". Foi como tal que se apresentou aos patriarcas Abraão, Isaac e Jacob e ainda aos seus muitos descendentes. Moisés é o primeiro a conhecer o seu "verdadeiro nome", que deve agora anunciar aos restantes Israelitas, que este mesmo deus o encarregou de resgatar da opressão no Egipto. Em suma, El Chadai e Yahvé ou Yahu são uma e a mesma divindade, tratou-se apenas de uma aparente e, em larga medida, inexplicada "mudança de nome". Mas terá sido mesmo assim? Sem entrar em considerações de cariz teológico, os investigadores desconfiam há muito que por detrás desta "mudança de nome" está, na verdade, uma "mudança de divindade". Muito provavelmente, Yahvé não foi a primeira divindade tutelar dos Israelitas. Há vários indícios que apontam nesse sentido. Em primeiro lugar, de forma decisiva, o próprio nome do povo: "Israel". A palavra "Israel" contém o elemento teofórico "el". "El" tornou-se, em hebraico, um nome genérico para "deus" mas, na origem, El era uma divindade específica considerada pelos povos do Levante o chefe do panteão e o criador do universo. No fundo, El era o equivalente, no Levante, de Zeus, na Grécia, e Júpiter, em Roma. Ora, é altamente significativo que o povo se chame "Isra-el" e não, por exemplo, "Isra-yahu" ou "Isra-yahweh". Ainda que seja difícil reconstruir etimologicamente o significado da palavra "Israel" ("El luta?" "El reina?" "El é justo?"), não há dúvida de que o nome do povo, atestado já na famosa estela de Merneptá (c. 1207 AC), a que nos referimos no capítulo anterior, reflete a proeminência de El enquanto divindade tutelar original.» (pp. 118-9)

«(...) o deus Yahvé, que aparece a Moisés e depois se transforma na divindade tutelar do povo de Israel, não é um deus autóctone da terra de Canaã.» (p. 121) 

«Que Yahvé não foi a divindade tutelar original de um povo cujo nome próprio aponta para El ("Isra-el") parece ser um dado sólido. Também há razões suficientes para assumir que Yahvé não é um deus autóctone de Canaã (um deus cananeu como Baal) e que é ao sul/sudeste deste território que a memória bíblica localiza as suas origens.» (p. 133)

«Para nós, leitores contemporâneos, a Bíblia é um livro fundamentalmente monoteísta. Mesmo quando se fala de outros deuses (como, por exemplo, o "cananeu" Baal ou o filisteu "Dagon"), o tom geral tende a desmentir a qualidade divina destas "falsas alternativas": pressente-se que estes "ídolos" nunca deveriam ter sido levados a sério, oxalá o povo de Israel e os demais povos se tivessem revelado um pouco mais sensatos. Uma tal impressão, inteiramente justa, mostra o quão bem-sucedida foi a revisão e edição da Bíblia, neste caso, o Antigo Testamento, na época exílica e, sobretudo, pós-exílica (a partir do século V AC), quando o monoteísmo bíblico atingiu plena expressão. Ora, para penetrar além deste "verniz final" e reconstruir a História da religião do Israel Antigo, impõe-se não só uma análise mais apurada dos textos bíblicos, mas também a consideração do que a arqueologia e a epigrafia nos desvelam acerca dessas práticas cultuais e das conceções religiosas então predominantes.» (p. 136)

«Esta conceção tradicional do papel de Moisés na História da religião não só do povo de Israel, mas até da humanidade em geral, resistiu durante muito tempo aos avanços da crítica histórica. Mesmo quando já se tinha percebido que a noção de que Moisés era o autor do Pentateuco não tinha fundamento histórico, continuava-se a supor que esta figura maior da tradição bíblica era o responsável ou, pelo menos, o líder indiscutível da mais decisiva das "revoluções religiosas", a "revolução monoteísta". Freud, por exemplo, dá plena expressão a esta convicção na sua obra Moisés e o Monoteísmo, publicada em 1939. Inspirado pelas então ainda recentes escavações arqueológicas no sítio de Amarna, no Egito, e a descoberta do "extravagante" monoteísmo (ou "quase-monoteísmo") do faraó Aquenáton (c. 1353-1336 AC), Freud desenvolve a sua própria teoria a respeito do surgimento e da sobrevivência do monoteísmo. Dá a Aquenáton a "glória" de ter sido o verdadeiro "visionário" da unicidade de Deus, mas atribui a Moisés a "perpetuação" deste escandaloso conceito. Moisés, sugere Freud, era egípcio e um dos sacerdotes do faraó do monoteísmo. Obrigado a fugir do Egito à morte do faraó Aquenáton, Moisés transmitiu àqueles que o seguiram a "ideia monoteísta" que fora entretanto reprimida e depois esquecida no Egito. Num autêntico "volte-face edipiano", Moisés acaba por ser morto pelos seus seguidores, mas, tal não só não impede como até estimula, por via da culpa e do remorso, o desenvolvimento do monoteísmo de perfil judaico.» (pp. 136-7)

Segundo o autor, Yahvé era um "deus-masculino", que tinha uma "esposa-divina". «Entre as possíveis "candidatas", a deusa Achera parece ter conquistado a "almejada posição". Esta divindade feminina é originária da zona do Levante, sendo mencionada pela primeira vez no século XVIII AC. A nossa fonte principal de informação sobre Achera são, no entanto, os textos inscritos em tabuletas de argila encontrados na cidade-estado de Ugarite, na costa mediterrânica, datados dos séculos XIII-XII AC.» (p. 140)

[Quando eu estive em Ugarite pude verificar a a importância do deus El, como principal divindade da época no Levante.]

A obra passa a analisar depois o período pré-monárquico (Livro de Os Juizes) e a designação de Saul para rei de Israel pelo último juiz, o profeta Samuel. David começa por ser rei de Judá e posteriormente também de Israel. Conquista Jerusalém aos Jebuseus e transforma-a em capital do reino. Por morte de Salomão o reino é dividido em dois: Israel ao norte, com a capital em Samaria, e Judá ao sul, com a capital em Jerusalém. 

Acontece que vários investigadores põem em causa a existência dos reis. Neste como em outros casos há sempre interpretações maximalistas, dos que tendem a aceitar como históricas quase todas as passagens da Bíblia, e minimalistas, dos que negam a historicidade da maior parte das narrativas bíblicas, considerando o Livro como exclusivamente religioso.

A dimensão e importância dos reinos de Judá e de Israel e a de algumas cidades, como Jerusalém, é igualmente contestada por alguns especialistas, que entendem tratar-se de sítios muito mais modestos do que deixam entender os textos bíblicos. 

O primeiro Templo de Jerusalém foi edificado no tempo de Salomão. O ataque de Nabucodonosor II ao reino de Judá teve lugar em 597 AC. O rei de Babilónia deportou Joaquim (Jeconias), o rei de Judá, e colocou no trono o tio deste, Matanias, que adoptou o nome de Sedecias. Uma nova revolta (houve várias) levou os babilónios a tomar medidas extremas. Nabucodonosor arrasou a cidade, destruiu o Templo e deportou a maior parte dos judeus para Babilónia (586 AC). Quando esta cidade foi tomada pelo rei persa Ciro II os judeus no Cativeiro puderam regressar à sua terra (537 AC).

«(...) a queda de Jerusalém e a perda da independência territorial parecem ter contribuído decisivamente para a emergência da Bíblia como uma espécie de nova pátria de um povo agora sem terra e sem rei. Este fenómeno acabaria por se revelar o princípio do processo pelo qual o povo de Israel se transformaria em povo judeu e o Yahvismo em Judaísmo, numa "reviravolta" histórica que fez (e continua a fazer) da memória do trauma uma fonte de renovação da identidade política e religiosa.»  (p. 288)

A reconstrução do Templo de Yahvé foi iniciada por Zorobabel e, segundo o Livro de Esdras, terá sido concluída em 515 AC, ao fim de muitas interrupções. Estas foram ditadas por aqueles que então habitavam Canaan, segundo o relato bíblico. «Evocar a oposição dos "habitantes da terra" e de Samaria é, por isso, muito provavelmente, tanto uma forma de desculpar os repatriados pelo atraso como uma estratégia para afirmar a sua identidade colectiva como único e "verdadeiro" Israel em face de um "outro" percebido como hostil.» (p. 311)

O segundo Templo foi aumentado com a passagem do tempo e especialmente enriquecido pelo rei Herodes, o Grande (37-4 AC). Devido às sucessivas revoltas dos judeus contra a tutela de Roma, este segundo Templo foi destruído em 70 DC por Tito, durante o reinado de seu pai Vespasiano. A cidade de Jerusalém foi quase arrasada e deportada a maior parte da população. Depois do cativeiro de Babilónia e da extinção do reino de Judá (século VI AC) e da anterior expulsão do reino de Israel (Samaria), por Teglate-Falasar III, rei da Assíria (século VIII AC), esta deportação constituiu verdadeiramente a primeira Diáspora judaica.

A continuação das revoltas contra os romanos levou estes à adopção de medidas progressivamente mais duras. Finalmente, em 135 DC, Bar Kochba, chefe da grande rebelião judaica foi preso e executado e a sua cabeça envida ao imperador Adriano. A cidade de Jerusalém foi completamente arrasada  e deportados quase todos os seus habitantes. O imperador ordenou a construção de uma nova cidade, que se chamou Aelia Capitolina; a Judeia passou a designar-se Palestina.

«Os nomes "judeu" ou "judio" têm, como se percebe pelos dicionários, dois significados fundamentais. Podem designar tanto um indivíduo natural ou com uma ligação histórica ao reino de Judá ou à província correspondente em períodos posteriores (Yehud, Judeia), como uma pessoa que professa a religião judaica. A dupla valência destes dois nomes e dos adjectivos homónimos tem, contudo, uma História e resulta da transformação da identidade do grupo designado.» (p. 321)

«A transição para uma significação mais nitidamente religiosa (ou "étnico-religiosa") parece ter ocorrido num segundo momento, no chamado "período helenístico" (c. 330-63 AC); altura em que aparece igualmente o nome abstrato "Ioudaismos" (na origem do vocábulo "Judaísmo" em português), concretamente no 2º Livro dos Macabeus (2 Mac 2,21).» (p. 322)

«Sobre os primeiros cem anos de domínio macedónio sobre Jerusalém e Judá dispomos de pouca informação. O historiador (judeu) Flávio Josefo, que viveu no século I DC, relata a tomada de Jerusalém por Ptolemeu I no seu livro Antiguidades Judaicas, mas a maioria dos investigadores não dá demasiado crédito àquela breve narrativa sobre a forma traiçoeira como o rei ptolemaico teria conquistado a cidade. Além deste episódio, Josefo conta-nos apenas a saga de uma família de judeus da Transjordânia - os Tobíadas - cujos membros ascenderam aos mais altos escalões da administração ptolemaica, e a história da tradução do Pentateuco (Torá) em grego. Este último acontecimento é, sem dúvida, o que de mais significativo ocorreu neste período. O relato de Josefo é baseado num outro documento, a chamada "carta de Aristeias", que terá sido composto no século II AC. Atribuída a Aristeias de Marmona, um oficial do rei Ptolemeu II (c. 284-246 AC), e dirigida a um certo Filócrates, irmão do primeiro, esta "missiva" é, na verdade, um pseudepígrafo no qual se relata a suposta inclusão da Torá na famosa biblioteca de Alexandria, uma das sete maravilhas do mundo antigo. De acordo com este texto, Demétrio de Faleros, o bibliotecário, teria alertado o rei Ptolemeu II para a existência de um "código de leis" judeu que haveria todo o interesse em incluir no acervo da biblioteca, mas que, "estando escrito na língua e caracteres dos judeus, iria reclamar um exigente trabalho de tradução em grego". O rei não se deixou desanimar e deu ordens para que se avançasse com o projecto. O interlocutor privilegiado dos Ptolemeus em Judá foi, nesta ocasião, o sumo sacerdote do templo de Jerusalém, que selecionou setenta e dois judeus, fluentes tanto em hebraico como em grego, para viajar para Alexandria. Ao cabo de setenta e dois dias (!), os tradutores apresentaram o fruto do seu trabalho e o texto final acabou por ser aceite tanto pelo povo e pelas autoridades judaicas como por quem havia comissionado a tradução. Nascia assim a chamada "Septuaginta" ou "Bíblia dos Setenta", em honra do número de tradutores (e de dias!) que o trabalho exigiu. Como se percebe pelo resumo apresentado, a narrativa tem uma tonalidade claramente lendária e serve, antes de mais, para exaltar a Torá, isto é, o Pentateuco, como um texto capaz de suscitar o interesse e a admiração do mais "bibliófilo" de todos os monarcas da Antiguidade, o fundador da biblioteca de Alexandria, Ptolemeu II Filadelfo.» (pp. 323-4)

«Como sugerido anos atrás pelo investigador americano Shaye Cohen, talvez nenhum momento se preste melhor à noção de um "nascimento" do Judaísmo (ou da "Judaicidade", como prefere designar este fenómeno que extravasa o âmbito meramente religioso) que o século II AC. Para Cohen e para muitos outros estudiosos na esteira dos seus influentes trabalhos de investigação, é no contacto com a cultura grega e, em larga medida graças a um processo de sinergia cultural que a ideia de pertença ao povo de Israel, isto é, de ser "judeu" vai superar o horizonte meramente geográfico ou genealógico. À imagem do que sucedera no seio da cultura grega, na qual "tornar-se grego" passou a ser uma possibilidade oferecida a estrangeiros por meio de um processo de educação (paideia), também ser "judeu" ("Ioudaios") deixou de ser apenas uma prerrogativa hereditária para passar a ser, até certo ponto, uma escolha ou "traço adquirido".» (p. 333)

«Em todo o caso, parece-nos que a hipótese formulada por Shaye Cohen capta o essencial do processo que deu novo "rosto" ao povo cuja História constituiu o objeto em estudo neste livro. Com a transformação da pertença étnico-religiosa, o "Israel bíblico" enquanto família de tribos e o Yahvismo enquanto culto herdado dão lugar a uma nova entidade - o Judaísmo - que combina aspetos de estirpe e de nação com características de estilo e de religião. Criou-se então uma tensão que ainda hoje subsiste e que, de certa forma, naquela altura, gerou as condições que permitiram a emergência do Cristianismo enquanto "religião da conversão" pela qual se formou um Israel não já (ou exclusivamente) da "carne", mas (também) do espírito (Gl 3,1-4,7). Estas, porém, são histórias... de outra História.» (pp. 334-5)

«"Afinal a Bíblia tinha mesmo razão?". No final deste percurso pela História do Israel Antigo, é justo concluir que a resposta a esta pergunta é tudo menos evidente. Tanto quanto se interroga a Bíblia sobre os acontecimentos ou circunstâncias históricas concretas como quando se coloca a questão mais genérica da relação entre Bíblia e História é inevitável reconhecer-se que responder simplesmente "sim" ou "não" empobrece a nossa compreensão não só do perfil e do horizonte da literatura bíblica, mas também da tarefa da reconstrução histórica. Nesta brevíssima conclusão, gostaria de explorar este tema, oferecendo uma síntese dos resultados obtidos e propondo uma reflexão sobre o valor da Bíblia como fonte sobre e do passado remoto.» (p. 337)

«A questão das origens de Yahvé, o Deus bíblico (capítulo IV), e de Israel (capítulo V) colocou-nos um outro desafio, a saber, como utilizar fontes bíblicas que desenham um "ideal teológico" sem, contudo, apagar completamente a memória das indeclináveis "sinuosidades" da História. No caso de Yahvé e do monoteísmo bíblico, são indícios em textos como Juízes 5, Deuterenómio  32 ou o Salmo 82 que nos permitem reconhecer, com a ajuda dos achados arqueológicos, que mais que um contestado "legado mosaico", o culto exclusivo de Yahvé e a proclamação da unicidade divina resultaram de um longo processo histórico que não culminou senão depois do exílio. No caso do surgimento de Israel na terra de Canaã, é o contraste entre os livros de Josué e dos Juízes que levou exegetas e historiadores a imaginar uma "chegada" menos violenta e, posteriormente, auxiliados pelos resultados da investigação arqueológica, reconceber a identidade do Israel primitivo em termos que compaginam exogeneidade e endogeneidade.» (p. 338)

«Neste sentido, e regressando ao que se sugeriu na Introdução, a Bíblia nunca poderia ter a "razão" que Werner Keller e outros autores na sua esteira queriam que ela tivesse. Se nos aproximamos do texto bíblico com "lentes positivistas" e movidos pela vontade de transformar a História no personagem principal do relato, o inevitável resultado é ou uma reconstrução pseudo-científica que ignora a natureza literária e o contexto concreto no qual a Bíblia foi escrita, ou um ceticismo desesperado que faz dos autores sagrados "inimigos" da (pretensa) objetividade histórica).» (p. 339)

Não sendo razoável alongar este texto com mais pormenores, as considerações que tecemos e as passagens do livro que transcrevemos parecem suficientes para despertar, nos mais interessados, a leitura da obra.


quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

O VISCONDE DE VILLA-MOURA

Bento de Oliveira Cardoso e Castro Guedes de Carvalho Lobo (1877-1935), foi o primeiro e único Visconde de Villa-Moura, título concedido por D. Carlos I. Deputado, novelista, ensaísta, cronista, devem-se-lhe numerosas obras, entre as quais A Vida Mental Portuguesa - Psychologia e Arte (1909), Nova Sapho - tragedia extranha: romance de pathologia sensual (1912), Fialho d'Almeida (1916) ou As Cinzas de Camillo (1917). Correspondeu-se com Fernando Pessoa, pertenceu ao movimento Renascença Portuguesa, foi cronista da revista "A Águia" e um grande admirador de Camilo Castelo Branco, sobre o qual publicou vários livros.

O Visconde de Villa-Moura por António Carneiro

Numa das suas primeiras obras, A Vida Mental Portuguesa - Psychologia e Arte, expõe o seu pensamento artístico e literário. Em Nova Sapho, aborda claramente o lesbianismo, a homossexualidade masculina e a necrofilia, o que provocou um escândalo na época. Fialho d'Almeida é um ensaio sobre o autor de Os gatos. Em As Cinzas de Camillo, dedicado a Nuno Plácido Castelo Branco, evoca a sempre recorrente questão da trasladação para o Panteão dos restos mortais do escritor.

O Visconde de Villa-Moura é hoje uma figura praticamente esquecida, ainda que seja mencionado duas vezes na História da Literatura Portuguesa, de António José Saraiva e Óscar Lopes. 

Escritor decadentista e saudosista, teve alguma notoriedade no seu tempo. As obras que conheço são aquelas cuja imagem reproduzo. Procurei durante muitos anos um exemplar de Nova Sapho, que nunca encontrei e que, por isso, não tendo lido não posso comentar.

Na sua introdução a Sodoma Divinizada, de Raul Leal, o organizador da edição, Aníbal Fernandes, refere-se a Nova Sapho, cuja publicação foi simultaneamente um êxito e um escândalo.

O Visconde de Villa-Moura, rico proprietário, não se casou e não teve descendência, sendo o título considerado extinto.


sábado, 3 de fevereiro de 2024

O MISTÉRO DA ESTRADA DE SINTRA

O Mistério da Estrada de Sintra, que é considerado o primeiro romance policial português, foi publicado sob a forma de cartas anónimas, e à maneira de folhetim, no "Diário de Notícias", em 1870. Na última carta, Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão assumem-se como autores e esclarecem tratar-se de uma brincadeira, para sossego dos leitores que haviam pensado relatarem as cartas a existência de um verdadeiro crime. A obra foi posteriormente editada em livro em 1884, tendo tido sucessivas reedições.

A Estrada de Sintra só aparece no início da obra, onde se cruzam diversas histórias, entre as quais o longo intermezzo de uma vista à ilha de Malta, que ocupa quase metade do livro, e que me suscita a curiosidade de saber porque foi escolhida aquela ilha, já então ocupada pelos britânicos, para introduzir um ponto de ruptura na história. Porque não, por exemplo, a Sicília? Eu sei que Eça fora cônsul de Portugal em Bristol e Newcastle, daí talvez o interesse em introduzir um oficial inglês no urdidura, tanto mais que o dito estivera nas Índias, já então também britânicas.

Lera o livro há quarenta anos, reli-o agora. E surgiu-me a vontade de saber qual a participação no mesmo que é devida a Eça e a Ramalho. Mas a preguiça, e a saúde, não me incentivam a fazer pesquisas. Suponho que tenha havido grande colaboração a nível do estabelecimento do enredo. E a escrita? Algumas páginas são incontestavelmente do punho de Eça.

Porque possuo uma vasta bibliografia passiva de Eça de Queiroz, logo que a disposição me seja favorável procurarei indagar.

Mas desiludam-se os amantes de Sintra, já que o local só acidentalmente figura nas primeiras páginas.


quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

TAKING SIDES

A propósito do "colaboracionismo" do actor Gustaf Gründgens, abordado em post anterior, revi hoje o filme Taking Sides (2001), de István Szabó, o mesmo realizador de Mephisto, a partir da peça homónima de Ronald Harwood.

O tema é o interrogatório do Doutor Wilhelm Furtwängler, famoso maestro, director da Orquestra Filarmónica de Berlim, por um imbecil major norte-americano, com os pés em cima da secretária e a mastigar pastilha elástica, episódio ocorrido no fim da Segunda Guerra Mundial, durante os chamados processos de desnazificação, como se fosse possível desnazificar alguém, uma ideia pueril e idiota. Os alemães que eram nazis, nazis permaneceram depois da Guerra, os que não eram, também não passaram a ser.

O Doutor Furtwängler foi acusado de colaborar com o regime nazi por não se ter exilado quando Hitler subiu ao Poder, por ter continuado a dirigir a Orquestra (um dos símbolos da Alemanha) durante os anos da guerra, por ter apertado a mão de Goebbels, por ter dirigido um concerto na véspera de um aniversário do Führer, por não ter recusado a sua nomeação para cargos honoríficos do Reich. Ele foi considerado pelos Aliados uma mais-valia do regime nazi mas seria finalmente absolvido, até porque dispunha de um capital simbólico extraordinário, já que era um dos mais notáveis maestros do mundo. E teria de algum modo o apoio dos britânicos e dos soviéticos, melhores conhecedores da música do que os inquiridores americanos.

Realmente, Furtwängler nunca pertenceu ao Partido Nazi, nem teria simpatias pelo nacional-socialismo, mas tentou acomodar-se ao regime para continuar a fazer o que melhor do que ninguém sabia: a grande música. Nunca foi anti-semita e até protegeu muitos judeus da Orquestra e não só, como foi oportunamente atestado. O filme (e a peça) trata da incapacidade do major estado-unidense para compreender a situação delicada do maestro, os equilíbrios indispensáveis, a vontade de permanecer na Alemanha e produzir música, e talvez, também, uma sedução pela posição máxima que tinha atingido no país e cuja aura irradiava para o mundo.

Não cabe aqui descrever o processo de Furtwängler, que pode consultar-se na sua biografia, mas tão só referir o desastroso inquérito de que o maestro foi objecto.