sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

A DESPEDIDA





Transcrevo, do blogue "Portugal dos Pequeninos", o artigo de Vasco Pulido Valente, hoje, no PÚBLICO:

«Eduardo Lourenço disse que o congresso do PSD lhe parecia uma espécie de missa cantada. A mim, que sei pouco de missas, o que me pareceu o congresso foi uma festa de despedida. Acredito piamente que Marcelo Rebelo de Sousa resolveu lá ir por razões sentimentais, como o resto das criaturas que dirigiram aquela extraordinária agremiação desde 1985. Tanto os “chefes” como os “militantes” sentiram, e com razão, que não se tornariam a encontrar tão cedo naquele ritual. E talvez nunca mais. Vieram de certa maneira ao enterro de uma história, para eles gloriosa, que não voltará. Depois de Passos Coelho, depois de Cavaco, depois desta maioria (embora com CDS) ninguém no seu juízo pensa que o PSD pode ter genuinamente a esperança de recuperar a confiança do país. Não são só estes quatro anos de “austeridade” e a incompetência política com que o Governo executou o programa da troika. É a singular esterilidade de quase tudo quanto fez. O grande partido “reformista” não reformou coisa nenhuma. Na essência, Portugal está como estava antes, com menos dinheiro. O primeiro-ministro transformou, ou deixou transformar, o debate político numa interminável conversa em calão económico, que ninguém percebe e porque verdadeiramente ninguém se interessa. O mortal comum olha para o “ajustamento” com desespero e com medo. E, por mais que Seguro o desconsole, quer outra coisa, seja ela qual for. Não há truque, não há manha, não há justificação ou argumento que alterem este facto básico. No Coliseu, a gente do PSD encontrou entre si algum conforto. Cá fora, o país assistiu ao espectáculo com desdém. A eleição para o Parlamento Europeu e, a seguir, as legislativas irão mostrar a fraqueza do partido. É um mistério como Passos Coelho e a sua corte conseguem imaginar que “empobrecer” os portugueses, liquidar uma boa parte da classe média e tirar o futuro às gerações que tão iludidamente se “qualificaram” é uma política esquecível e perdoável. Era necessário? Acredito. Mas para cada um de nós a necessidade não aliviou nada. Sócrates não compreendeu ainda que morreu em 2010. O actual primeiro-ministro já suspeita que vai morrer em 2014 ou 2015, principalmente quando o país descobrir, com espanto e com terror, que a “austeridade” irá durar mais quinze ou vinte anos. A despedida do PSD chegou na altura certa.»

Vasco Pulido Valente, Público


O desideratum de Francisco Sá Carneiro "um governo, uma maioria, um presidente" foi uma tragédia para Portugal.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

AS ELEIÇÕES




Uma peça de teatro (literatura de cordel) de L. F. de Castro Soromenho, publicada em 1874, há 140 anos. Em meia-dúzia de páginas está lá tudo. A prostituição política (pior de que a sexual, que nem é má, pois é condição de sobrevivência para muitos, que a servem e se servem), o caciquismo eleitoral, as promessas inconsequentes, etc.

Hoje como ontem...  e amanhã mais ainda.

Quem tiver a oportunidade de encontrar um exemplar, compre-o (pois é uma relíquia) e leia-o.

sábado, 22 de fevereiro de 2014

HISTÓRIA DOS GONCOURT (DOS PRÉMIOS, QUE NÃO DOS IRMÃOS)




Sobre os célebres, e inseparáveis, irmãos Edmond (1822-1896) e Jules de Goncourt (1830-1870) escreveremos mais tarde. Agora, o propósito é discorrer sobre um dos mais recentes livros de Pierre Assouline, publicado há pouco mais de um mês, Du côté de chez Drouant . Cent dix ans de vie littéraire chez les Goncourt, em que o autor descreve a criação do Prémio Goncourt e a sua atribuição ao longo de mais de um século.

O Prémio Goncourt foi instituído por testamento de Edmond de Goncourt, em 1884, mais de uma dezena de anos após a morte do seu irmão Jules.


Transcrevem-se alguns parágrafos do testamento:

«Ceci est mon testament. Moi, Edmond Huot de Goncourt, sain d'esprit, réflechissant à l'ébranlement de ma santé depuis la mort de mon frère, songeant à la servitude de la mort, à l'incertitude de son heure, et de peur d'être prévenu par elle ansi que l'a dit mon maître le Duc de Saint-Simon, j'écris et je signe de ma main ce présent testament.

Considérant que je laisse les parents qui me  dont la fondationaffectionnés et chers dans un état de fortune tel qu'ils  n'ont pas besoin de mon bien après ma mort, je dispose de ce que je possède ainsi qu'il suit: je nomme pour exécuteur testamentaire, mon ami Alphonse Daudet, à la charge par lui de constituer, dans l'année de  mon décés, à perpétuité, une société littéraire dont la fondation a été, tout le temps de notre vie d'hommes de letres, la pensée de mon frère et la mienne et qui a pour l'object la création ci-dessous:

- D'un prix annuel de 5 000 francs destiné à un ouvrage littéraire;
- D'une rente annuelle dde 6 000 francs au profit de chacun des membres de la société.

Le tout dans les termes et dans les conditions que je vais indiquer:

Cette société se composera de dix membres qui seront:
1. Alphonse Daudet; 2. Huysmans; 3. Octave Mirbeau; 4. Rosny (l'ainê); 5. Rosny (le jeune); 6. Léon Hennique; 7. Paul Marguerite; 8, Gustave Geffroy; ); 9 ...; 10...

Dans le cas où, à l'ouverture de mon testament, il y aurait des décédés ou refusants, les survivants éliront les successeurs des membres décédés ou refusants. Le président, pour la premiére année, sera de droit le plus âgé des membres qui existeront à mon décès.

Pour avoir l'honneur de faire partie de la Société, il sera nécessaire d'être homme de lettres, on y recevra ni grands seigneurs, ni hommes politiques. Toute éléction à l'Académie française d'un des membres entraînera de droit la démission de ce mtembre et la renonciation à la rente ci-aprés stipulée.

Il sera remplacé ainsi que tout membre décédé par un vote où, en cas de partage, la voix du président comptera pour deux.

[...] Je déclare affecter pour la constitution de cette société tant le produit de la vente de mes biens et objets mobiliers que les sommes à provenir de mes droits d'auteur pour les livres et pièces de théatre publiés de mon vivant, aussi bien que pour les publications d'ouvrages qui paraîtrons après mon décès, nottamment un ouvrage intitulé: Journal des Goncourts, Mémoires de la vie littéraire.

[...] Chacun des membres de la Société aura droit à une rente annuelle de 6 000 francs, soit pour les dix membres 60 000 francs qui seront pris sur les 65 000 francs de rente existant alors, et seront payables en même temps que les arrérages du titre de rentes sur l'État. Cette rente sera incessible et insaississable et sera servie à vie à chacun des membres par mes exécuteurs testamentaires.

[...] Le prix sera donné au meilleur roman, au meilleur recueil de nouveles, au meilleur volme d'impressions, au meilleur volume d'imagination en prose, et exclusivement en prose, publié dans l'année. [...] Mon voeu suprême, voeu que je prie les jeunes académiciens futurs d'avoir présent à la mémoire, c'est que ce prix soit donné à la jeunesse, à l'originalité du talent, aux tentatives nouvelles et hardies de la pensée et de la forme. Le roman, dans des conditions d'égalité, aura toujours la préférence. Le prix ne pourra jamais être donné à un membre de la Société.

[...] En vue de la réalisation de ma jeune académie, je donne à mon exécuteur testamentaire, ou peut-être mes exécuteurs testamentaires, les pouvoirs les plus étendus à l'effet de réaliser l'actif, pour procéder à toutes les ventes d'immeubles, d'objets et de valeurs mobilières, payer toutes sommes qui pourraient être dues à quelque titre que ce soit par nue succession, acquitter tous legs et droits de mutation, faire l'emploi, en rentes sur l'État, dans les termes ci-dessus, de tous les capitaux qui pourraient revenir à ma succession à quelque titre et à quelque époque que ce puisse être, faire le service des rentes au profit des membres de la Société.

[...]

Lequel testament écrit de ma main j'ai, pour marque de témoignage de ma derniére volonté, signé

EDMOND DE GONCOURT

Auteuil, ce 16 novembre 1884»




Por morte de Edmond de Goncourt, em 1896, e apesar da contestação da família ao testamento (um caso clássico), a sociedade foi constituída em 1900, com a designação Société littéraire des Goncourt, mas cedo passou a ser conhecida por académie Goncourt, por oposição à Académie française, contra a qual ela fora concebida. E os seus membros passaram a ser conhecidos por "les Dix", na feliz expressão de Jules Vallès, referindo-se ao número dos comensais, cujos couverts são numerados de 1 a 10. Os estatutos da academia Goncourt datam de 19 de Janeiro de 1903, tendo sido considerada de utilidade pública. É com a Academia Francesa a única instituição literária francesa dotada de existência jurídica própria e de uma missão específica.

No início, os jantares de trabalho (ainda não eram almoços) realizavam-se no "salon pour noces" do Grand Hôtel (place de l'Opéra), no restaurante Champeaux (place de la Bourse), imortalizado por Zola nos seus romances, ou no Café de Paris (cuja localização Assouline não refere e que nos abstemos de identificar, por existirem em Paris vários restaurantes com esta designação; poderá tratar-se de um restaurante já encerrado).



É só em 31 de Outubro de 1914 que os Dez se reúnem pela primeira vez no restaurante de Charles Drouant, na place Gaillon, esquina com a rue Saint Augustin. Os couverts são numerados de 1 a 10 e os membros, quando eleitos, ocupam o lugar do respectivo antecessor. Os habituais jantares dos académicos foram há muito tempo substituídos por almoços, que se realizam na primeira terça-feira de cada mês, sendo o vencedor anual do prémio anunciado no princípio de Novembro. Os talheres, em vermeil, ostentando no cabo os nomes dos utilizadores, estão guardados num cofre-forte, ocultado por uma cortina, na sala dos almoços.





O prémio começou a ser atribuído em 1903 (21 de Dezembro), sob a presidência de Joris-Karl Huysmans, sendo o galardoado John-Antoine Nau, pelo seu livro Force ennemie, publicado pelas edições  de la Plume. Ainda estavam para vir as grandes rivalidades entre as editoras Gallimard e Grasset.

A história do funcionamento da academia Goncourt e da atribuição dos prémios está recheada de peripécias, que Assouline descreve com humor no seu livro. Grandes escritores foram galardoados e também outros dos quais ninguém hoje se lembra. E ficaram de fora muitos ilustres nomes das letras.

Em 1926 dez jornalistas e críticos literários criaram o Prémio Renaudot, em homenagem ao grande jornalista e médico Théophraste Renaudot (1586-1653), igualmente atribuído a obras literárias, e que é de alguma forma um complemento do Prémio Goncourt.

Entre os laureados com o Goncourt contam-se Marcel Proust, André Malraux, Elsa Triolet, Jean-Louis Bory, Julien Gracq (que o recusou), Simone de Beauvoir, Romain Gary, Vintila Horia (a quem o prémio foi "atribuído" mas não "concedido", uma invenção do júri para salvar a face, considerando as pressões a que foi sujeito, atendendo ao "passado fascista" do premiado), Michel Tournier, Yves Navarre, Marguerite Duras, Tahar Ben Jelloun, Amin Maalouf, Jonathan Litell, Gilles Leroy e Michel Houellebecq.

Os actuais membros da academia são, por ordem dos couverts, Bernard Pivot (que preside), Edmonde Charles-Roux (já com 93 anos e anterior presidente), Didier Decoin, Paule Constant, Patrick Rambaud, Tahar Ben Jelloun, Régis Debray, Françoise Chandernagor, Philippe Claudel e Pierre Assouline.

Com a evolução dos tempos, o valor do prémio passou a ser simbólico, sendo hoje de 10 euros. Também os membros da academia apenas beneficiam dos almoços mensais gratuitos, tendo há muito tempo desaparecido a renda anual prevista nos estatutos.

Se, como escritores, os irmãos Goncourt nunca alcançaram a glória com que sonharam, é um facto que o Prémio Goncourt é a mais importante recompensa literária francesa.

O restaurante Drouant, que foi adquirido em 2006 pelo actual proprietário, o chefe Antoine Westermann, comemora este ano o centenário como local de reunião dos membros da academia Goncourt.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

A "PRIMAVERA" UCRANIANA




Os acontecimentos das últimas horas em Kiev, e noutras cidades da Ucrânia, com dezenas de mortos e feridos, demonstram que o confronto entre o regime e as forças que se lhe opõem subiu de patamar.
aqui escrevemos, há dias, sobre a situação naquele país, referindo os interesses em jogo e os equívocos de grande parte dos manifestantes.

A recente contestação ao presidente Viktor Yanukovytch e ao regime iniciou-se com a recusa do governo aderir à União Europeia (e, porventura, mais tarde à NATO), o que poria obviamente em causa o equilíbrio geoestratégico sustentado pela Rússia. Já basta a Moscovo terem passado para a órbita ocidental as antigas democracias populares de Leste para que o Kremlin se oponha a que o mesmo aconteça às repúblicas da ex-União Soviética (exceptuando o caso consumado da Estónia, da Letónia e da Lituânia, embora estas menos importantes).

Ninguém ignora que lavra na Ucrânia uma profunda corrupção, mas também será pacífico afirmar que a corrupção no chamado mundo ocidental não lhe fica atrás. É certo que os ucranianos estão fartos da actual oligarquia no poder e que muitos dos que emigraram e já regressaram a casa ficaram com uma  certa tentação do Ocidente, mesmo assim melhor, por enquanto, do que o seu país, que após a queda da União Soviética e a introdução da economia de mercado, viu extinguir-se a protecção social que o regime comunista proporcionava aos habitantes. Dispor de casa, saúde, ensino e transporte gratuitos ou quase, auferir uma reforma compatível com estas regalias, ter emprego, etc., não são coisas despiciendas.

É verdade que o totalitarismo neoliberal em ascensão pretende arrebanhar para a sua órbita, um após outro, os países que ainda não sacrificam completamente no altar do monoteísmo do mercado. Por isso, é compreensível o incitamento à contestação ao regime de Kiev e o seu apoio não só moral mas material aos manifestantes, com ajudas em dinheiro e em armamento e com promessas de um futuro radioso. Lamenta-se que muitos ucranianos acreditem nestes cantos de sereias que mais não são do que silvos de serpente. E que não se apercebam que o mal de hoje seria bem pior amanhã se o regime fosse derrubado. Nem a União Europeia nem os Estados Unidos estariam em condições e na disposição de facultarem à Ucrânia o apoio que hoje recebe da Rússia.

Não poderia o inefável Durão Barroso deixar de se manifestar "chocado" com os últimos desenvolvimentos da situação e de promover para amanhã uma reunião dos ministros dos negócios estrangeiros da União Europeia. Com a intenção de aplicar sanções à Ucrânia. Com as sanções, lembremo-nos sempre do caso do Iraque, quem sofre é o povo, e os políticos sabem-no bem.

Também o pseudo-filósofo francês Bernard-Henri Levy deixou o seu luxuoso riyadh de Marrakesh e foi arengar às massas opositoras na praça da Independência, em Kiev. Este homem, que não tem um palmo de vergonha, já se exibira na Líbia, de camisa desabotoada, como é seu timbre, incitando à revolução contra Qaddafi. Os resultados não são animadores, e ainda a procissão vai no adro. O escritor Pierre Assouline, aludindo a Lawrence, chamou-lhe o "Levy d'Arabie".

Espera-se que desta suposta "primavera" ucraniana não resultem situações idênticas á que ocorrem hoje nos países árabes onde também despertaram primaveras.

Não é propriamente expectável, mas o mal não tem limites.


segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

UM HOLOCAUSTO POR OUTROS MEIOS

Um amigo enviou-me o texto abaixo. É mais uma voz a juntar-se a todas as que denunciam a actividade criminosa em curso no nosso país.
 
 
NÃO QUERO MORRER…..






 Apareceu, por mão amiga, este texto de Júlio Isidro que dá para este fim de semana dar ânimo a todos os que bem pensam sobre o nosso futuro.

NÃO, NÃO ESTOU VELHO!!!!!!
NÃO SOU É SUFICIENTEMENTE NOVO  PARA  JÁ SABER TUDO!
 Passaram 40 anos de um sonho chamado Abril.
E lembro-me do texto de Jorge de Sena…. Não quero morrer sem ver a cor da liberdade.
Passaram quatro décadas e de súbito os portugueses ficam a saber, em espanto, que são responsáveis de uma crise e que a têm que pagar…. civilizadamente,  ordenadamente, no respeito  das regras da democracia, com manifestações próprias das democracias e greves a que têm direito, mas demonstrando sempre o seu elevado espírito cívico, no sofrer e ….calar.
Sou dos que acreditam na invenção desta crise.
Um “directório” algures  decidiu que as classes médias estavam a viver acima da média. E de repente verificou-se que todos os países estão a dever dinheiro uns aos outros…. a dívida soberana entrou no nosso vocabulário e invadiu o dia a dia.
Serviu para despedir, cortar salários, regalias/direitos do chamado Estado Social e o valor do trabalho foi diminuído, embora um nosso ministro tenha dito decerto por lapso, que “o trabalho liberta”, frase escrita no portão de entrada de Auschwitz.
Parece que  alguém anda à procura de uma solução que se espera não seja final.
Os homens nascem com direito à felicidade e não apenas à estrita e restrita sobrevivência.
Foi perante o espanto dos portugueses que os velhos ficaram com muito menos do seu contrato com o Estado  que se comprometia devolver o investimento de uma vida de trabalho.Mas, daqui a 20 anos isto resolve-se.
Agora, os velhos atónitos, repartem o dinheiro  entre os medicamentos e a comida.
E ainda tem que dar para ajudar os filhos e netos num exercício de gestão impossível.
A Igreja e tantas instituições de solidariedade fazem diariamente o miagre da multiplicação dos pães.
 Morrem mais velhos em solidão, dão por eles pelo cheiro, os passes sociais impedem-nos de  sair de casa,  suicidam-se mais pessoas, mata-se mais dentro de casa, maridos, mulheres e filhos mancham-se  de sangue , 5% dos sem abrigo têm cursos superiores, consta que há cursos superiores  de geração espontânea, mas 81.000  licenciados estão desempregados.
Milhares de alunos saem das universidades porque não têm como pagar as propinas, enquanto que muitos desistem de estudar para procurar trabalho.
Há 200.000 novos emigrantes, e o filme “Gaiola Dourada”  faz um milhão de espectadores.
Há terras do interior, sem centro de saúde, sem correios e sem finanças, e os festivais de verão estão cheios com bilhetes de centenas de euros.
Há carros topo de gama para sortear e auto-estradas desertas. Na televisão a gente vê gente a fazer sexo explícito e explicitamente a revelar histórias de vida que exaltam a boçalidade.
Há 50.000 trabalhadores rurais que abandonaram os campos, mas  há as grandes vitórias da venda de dívida pública a taxas muito mais altas do que outros países intervencionados.
Há romances de ajustes de contas entre políticos e ex-políticos, mas tudo vai acabar em bem...estar para ambas as partes.
Aumentam as mortes por problemas respiratórios consequência de carências alimentares e higiénicas, há enfermeiros a partir entre lágrimas para Inglaterra e Alemanha para ganharem muito mais do que 3 euros à hora, há o romance do senhor Hollande e o enredo do senhor Obama que tudo tem feito para que o SNS americano seja mesmo para todos os americanos. Também ele tem um sonho…
Há a privatização de empresas portuguesas altamente lucrativas e outras que virão a ser lucrativas. Se são e podem vir a ser, porque é que se vendem?
E há a saída à irlandesa quando eu preferia uma…à francesa.
Há muita gente a opinar, alguns escondidos com o rabo de fora.
E aprendemos neologismos como “inconseguimento” e “irrevogável” que quer dizer exactamente o contrário do que está escrito no dicionário.
Mas há os penalties escalpelizados na TV em câmara lenta, muito lenta e muito discutidos, e muita conversa, muita conversa e nós, distraídos.
E agora, já quase todos sabemos que existiu um pintor chamado Miró, nem que seja por via bancária. Surrealista…
Mas há os meninos que têm que ir à escola nas férias para ter pequeno- almoço e almoço.
E as mães que vão ao banco…. alimentar contra a fome , envergonhadamente , matar a fome dos seus meninos.
É por estes meninos com a esperança de dias melhores prometidos para daqui a 20 anos, pelos velhos sem mais 20 anos de esperança de vida e pelos quarentões com a desconfiança de que não mudarão de vida, que eu não quero morrer sem ver a cor de uma nova liberdade.
 Júlio Isidro

sábado, 15 de fevereiro de 2014

UMA BIBLIOTECA NA AJUDA



Em livro recentemente publicado, A Biblioteca dos cinco continentes - A Livraria Real do Paço da Ajuda, faz António Valdemar a história da valiosíssima biblioteca do Palácio da Ajuda, que reúne, em salas deslumbrantes, um universo de livros antigos, manuscritos, gravuras, litografias, partituras musicais, mapas, cartas de navegação, tabelas astronómicas e outros bens, que testemunham o percurso multisecular do povo português. Como escreve o autor, o acervo conservado na Biblioteca da Ajuda assinala «o intercâmbio de culturas e o encontro de civilizações em cinco continentes».

O terramoto de 1755 provocou a destruição de milhares de obras do património nacional, incluindo a Livraria Real, no Paço da Ribeira, uma das mais famosas bibliotecas da Europa. Criado o pavor em Lisboa, a Família Real, receosa da repetição dos sismos, resolveu instalar-se numa residência provisória de madeira, no alto da Calçada da Ajuda, a Real Barraca, onde permaneceu até esta ter sido destruída por um incêndio em 1794.


Próximo do sítio onde existira a Real Barraca, foi lançada em 1795 a primeira pedra do futuro Palácio da Ajuda. Em 1826, a residência estava já habitável, e nela se instalou a Infanta-Regente D. Isabel Maria. As obras continuaram, mas o projecto inicial do arquitecto José da Costa e Silva ficou inconcluso, permanecendo o edifício até hoje apenas com a parte leste construída.

O que restou da Livraria Real e outros fundos (dos Jesuítas, dos Távoras, etc.) foram depositados em 1756 num anexo da Real Barraca, tendo sido nomeado José Caetano de Almeida director da biblioteca. Com a partida da Família Real para o Brasil em 1807, foram posteriormente enviados para aquela colónia os livros e manuscritos da Biblioteca Real. Quando a Corte regressou a Lisboa, em 1821, os manuscritos da Coroa voltaram mas os 60.000 livros ficaram, vindo a constituir o fundo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.


Em 1839 foi nomeado director da Biblioteca o escritor Alexandre Herculano, que permaneceu no cargo até à sua morte, em 1877. Sucedeu-lhe José de Magalhães Coutinho, director e lente jubilado da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, médico da Casa Real e secretário particular do rei. As actuais instalações da Biblioteca do Palácio da Ajuda foram inauguradas, durante o seu mandato, por D. Luís, em 10 de Junho de 1880. Note-se que o recheio da biblioteca que então existia em anexo da Barraca Real não fora atingido pelas chamas por ocasião do referido incêndio.

De 1895 a 1910, a direcção da Biblioteca foi assegurada pelo escritor Ramalho Ortigão, que renunciou ao cargo aquando da proclamação da República. Deve-se a Jordão de Freitas, director de 1918 a 1936, ter assegurado, com grande mérito, o conturbado período de transição da Monarquia para o novo regime.



O "mundo" da Ajuda, e da zona de Belém que lhe é contígua, foi objecto da investigação de Mário de Sampayo Ribeiro, José Dias Sanches, João Lúcio de Azevedo, José-Augusto França, Caetano Beirão, Ângelo Pereira, Ester de Lemos, Júlio de Vilhena, Eduardo de Noronha, Rocha Martins, Thomaz de Mello Breyner e outros ilustres cronistas, que vazaram no papel o resultado dos seus estudos e as suas memórias.

Ao longo de dois séculos Belém com os Jerónimos, a Torre, o Palácio, o Museu dos Coches, os jardins e, hoje, o Centro Cultural tem sido um pólo de atracção para nacionais e estrangeiros. E a Ajuda, com o Palácio e a Calçada, onde se situaram diversas unidades militares e onde ainda hoje permanecem o Regimento de Lanceiros e a Guarda Nacional Republicana, é igualmente uma zona de memoráveis tradições.



Com esta sua breve mas elucidativa monografia da Biblioteca da Ajuda António Valdemar, olisipógrafo eminente, prestou mais um serviço a Lisboa e à cultura.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

UTOPIAS E REALIDADES




Não se trata da ilha imaginária de Thomas More mas de um imenso complexo habitacional privado também ficcionado, ou não tanto, na periferia do Cairo, ainda que o autor refira no preâmbulo «The Utopia mentioned here is an imaginary place, as are the characters who live in and around it, even though the author knows for certain that this place will exist soon. Any resemblance to place and individuals in our present reality is purely coincidental». Advertência redundante, não só pelo contexto da obra mas pelas referências concretas à capital egípcia e, em particular, a Shubra, um dos distritos problemáticos do Cairo.

O livro foi premonitoriamente publicado em árabe, no Egipto, em 2009, portanto antes da revolução que depôs Mubarak, e editado depois em inglês, em 2011, pela Bloomsbury Qatar Foundation Publishing.

Nascido em 1962, Ahmed Khaled Towfik doutorou-se em Medicina, em 1997, na Universidade de Tanta (cidade a norte do Cairo), na qual lecciona. Paralelamente, dedicou-se à escrita, no campo da ficção científica e do horror, tornando-se um dos mais influentes escritores egípcios contemporâneos, especialmente popular entre a juventude. A sua notoriedade estende-se a todo o mundo árabe.

A presente obra relata a estória de dois jovens habitantes de Utopia (um rapaz, Larine, e uma rapariga, Germinal) que resolvem divertir-se, fazendo uma inclusão clandestina na vizinha cidade dos "Outros", pelo que matam dois trabalhadores dos muitos que prestam diariamente serviços menores no seu complexo, utilizando as respectivas roupas como disfarce para não serem identificados.

A vida na Utopia decorre monótona, entre sexo e drogas (a célebre "phlogistina", também ambicionada pelos "Outros"). Por entre peripécias que permitem ao autor discorrer sobre a vida miserável da maioria da população do Cairo, Larine decide, como recordação, matar uma prostituta na zona de Ataba (a célebre e movimentada praça próxima dos jardins de Azbakiya). Sendo perseguido pelos locais, é protegido por um rapaz dos "Outros", Gaber, que o obriga a experimentar a vida dura dos seus "concidadãos" sujos, doentes e esfomeados nos túneis desactivados do metropolitano da capital. Correndo na vizinhança que alberga dois "utopistas" em casa, Gaber  resolve salvar os "estrangeiros" o que faz, facilitando-lhes a fuga através de um túnel secreto que liga a cidade à Utopia. Enquanto prepara o seu plano, Larine viola-lhe a irmã tuberculosa que mesmo assim tentou resistir à investida do jovem bonito e rico oriundo da classe opressora. Não se apercebendo do facto, Gaber conduz os dois amigos ao caminho da salvação, através do corredor subterrâneo que vai desembocar numa saída disfarçada num jardim da Utopia. Mas, antes de se despedir e de lhe agradecer a hospitalidade, Larine mata Gaber, perante o espanto de Germinal.

Nos dias seguintes, os aviões particulares que permitem aos habitantes de Utopia deslocarem-se, ficam imobilizados devido a uma falsificação do combustível provocada pelos "Outros", que decidem entretanto unir-se e investir contra o isolado complexo habitacional dos detentores do Poder. A estória acaba aqui, mas os subsequentes acontecimentos no Egipto dizem-nos alguma coisa sobre as desigualdades sociais no país. Curiosamente, Utopia não elabora sobre a questão religiosa.

O livro recorre frequentemente aos versos de Abdel Rahman el-Abnudi (n. 1938), poeta popular e activista político egípcio, que escreve em árabe dialectal. Transcrevemos um poema:

«We are two peoples... two peoples... two peoples
Look where the first is, and where's the other
Draw the line between them, brother
You sold the land with plough and axe - on her people's backs
Before the eyes of the world, you undid her clothes
Stark naked she was, from head to toes
Front and back, knees to nose
You could smel her breath a mile away
We the people are sons of dogs
We belong to the Beatiful One
And his way is hard
With the kick of a boot and the whack of a cane
Then we die in the war, all in vain.»

Talvez Ahmed Khaled Tawfiq (transliteração preferível a Towfik) nos brinde agora com um livro acerca da situação no Egipto após a revolução de 2011. Aguardemos e agradeceremos.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

ESTRANGEIRO, OU ESTRANHO?




Acabei de rever em DVD Lo straniero, de Visconti, a cuja projecção assistira no cinema, há já muitos anos. Não é a obra máxima do notável realizador italiano, talvez o maior cineasta de sempre, mas é um filme magnífico.



Trata-se da adaptação do romance L'Étranger, de Albert Camus, uma obra-prima da literatura francesa e universal.


Quando li o livro, em jovem, apercebi-me de como Camus captara os sentimentos mais íntimos do protagonista, Mersault, e os expusera à contemplação dos leitores. Mersault incarna o "homem absurdo" teorizado em Le Mythe de Sisyphe e evocado mais tarde em L'Homme révolté. Não é alguém que se "suicida" e não é também o "assassino" que mata o argelino. É alguém que não se conforma com as regras da moral social, que deixa transparecer uma aparente indiferença pela morte da mãe, e que acaba por ser condenado mais por essa "falta" aos costumes do que pelo homicídio consumado, ainda que inexplicado.

Em Situations I, Sartre discorreu sobre a obra ao considerar que a existência humana não tem sentido. E o próprio Camus escreveu em 1955: « J’ai résumé L’Étranger, il y a longtemps, par une phrase dont je reconnais qu’elle est très paradoxale : “Dans notre société tout homme qui ne pleure pas à l’enterrement de sa mère risque d’être condamné à mort.” Je voulais dire seulement que le héros du livre est condamné parce qu’il ne joue pas le jeu. En ce sens, il est étranger à la société où il vit, où il erre, en marge, dans les faubourgs de la vie privée, solitaire, sensuelle. Et c’est pourquoi des lecteurs ont été tentés de le considérer comme une épave. On aura cependant une idée plus exacte du personnage, plus conforme en tout cas aux intentions de son auteur, si l’on se demande en quoi Meursault ne joue pas le jeu. La réponse est simple : il refuse de mentir. » […].

Um livro a reler.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

OS ENCANTOS DA NEGRITUDE




Algumas semanas atrás, a imprensa francesa fez-se eco da eleição do escritor haitiano-canadiano Dany Laferrière (n. 1953) para a Academia Francesa. Trata-se do segundo negro a ingressar na venerável instituição criada pelo cardeal-duque de Richelieu em 1635. O primeiro negro admitido na Academia foi o antigo presiente do Senegal, Léopold Sédar Senghor, a quem se deve o conceito de negritude.

Autor de uma vintena de livros, Laferrière, que nasceu em Port-au-Prince e emigrou para o Canadá em 1976, estreou-se na escrita com Comment faire l'amour avec un nègre sans se fatiguer, publicado em 1985, obra que lhe deu uma imediata visibilidade e foi adaptada ao cinema.

Instalado em Montréal, trabalhou em fábricas até se consagrar inteiramente à literatura e à actividade cultural. Como autodidata, frequentou a Unversidade do Québec naquela cidade. É galardoado com numerosos prémios, entre os quais o Prix Médicis e o Grand Prix du Livre de Montréal pelo seu livro L'énigme du retour (2009).

O seu primeiro livro é uma ficção autobiográfica, admiravelmente bem escrita, sobre a condição dos negros, mais precisamente dos pretos no mundo branco e ocidental.

Pela excelência da síntese, transcrevemos a nota do editor na contracapa:

«Premier livre de Dany Laferrière, satire féroce des stéréotypes et des clichés racistes, Comment faire l'amour avec un nègre sans se fatiguer se présente comme la joyeuse description d'une vie de bohème, version black.

Deux jeunes noirs oisifs partagent un appartement dans un quartier pauvre de Montréal. L'un d'entre eux, le narrateur, projette d'écrire un roman et, pour s'occuper, connaît diverses aventures féminines en dissertant sur la trilogie Blanc-Blanche-Nègre. Car c'est un juste retour des choses, après avoir souffert de l'esclavage, que de séduire toutes ces jeunes donzelles innocentes ou curieuses. Quant à son compère, Bouba, il dort, dort, dort. Et philosophe en lisant le Coran, sur des airs de jazz.

Cachez vos filles, blanches mères, les nègres sont en ville !»
 
Conhecemos todos o lugar dos negros, tal como o dos árabes, no imaginário sexual do Ocidente. Sempre os negros, desde os "descobrimentos" europeus, foram suspeitados pelos brancos de uma especial potência sexual. Ao longo de séculos, ainda que escravos ou criados, serviram para o entretenimento de donas ou donos, patroas ou patrões. A imigração, iniciada no século passado, trouxe-os ao convívio quotidiano dos povos "anfitriões" que deles passaram a aproveitar (com facilidade, dado o estatuto de menoridade social do preto) os desejados atributos.

Sabendo-se pretendidos, os negros começaram a usar a sua reputação em proveito próprio, e em proveito alheio, tais as intermináveis solicitações de que passaram a ser alvo. Desde há muito que se tornaram num símbolo sexual das comunidades brancas. E, a avaliar pela literatura publicada (como o livro de Laferrière) ou pela vida prática, ninguém se cansa de ir para a cama com um negro. Ao lado de um tipo de "beleza branca" passou a existir um tipo de "beleza negra", tal como foi imortalizado pelo célebre fotógrafo Robert Mapplethorpe no seu Black Book.




Segundo Senghor, a negritude é «l'ensemble des valeurs culturelles de l'Afrique noire» E ainda,  «La négritude est un fait, une culture. C'est l'ensemble des valeurs économiques, politiques, intellectuelles, morales, artistiques et sociales des peuples d'Afrique et des minorités noires d'Amérique, d'Asie, d'Europe et d'Océanie». Para Aimé Césaire a palavra «désigne en premier lieu le rejet. Le rejet de l'assimilation culturelle ; le rejet d'une certaine image du Noir paisible, incapable de construire une civilisation. Le culturel prime sur le politique. ». Foi a elaboração deste conceito de negritude, a sua intelectualidade e a sua francofonia que catapultaram Senghor para par dos "imortais".

Acrescente-se que Comment faire l'amour avec un nègre sans se fatiguer relata os pormenores das aventuras do Narrador (um jovem negro) com raparigas brancas. A descrição permanece inteiramente válida se substituirmos raparigas por mulheres, rapazes ou homens. Os detalhes mantêm-se, mutatis mutandis o sexo.

Sendo o segundo negro admitido na Academia Francesa, Dany Laferrière é também o primeiro canadiano (mais precisamente quebequiano) e o primeiro haitiano a entrar na casa do Quai Conti.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

QUADROS SEM UMA EXPOSIÇÃO




Não, não estou a evocar Mussorgsky. Refiro-me aos quadros de Joan Miró que provocaram por estes dias alarido na comunicação social. Dispenso-me de aludir às peripécias do episódio da sua (ainda) não venda, que consubstancia uma mistura de irresponsabilidade e de falta de vergonha [se vergonha ainda existisse na gente que nos (des)governa].

O pretendido leilão dos 85 quadros de Miró que pertenciam ao BPN, com o pretexto de atenuar a contribuição dos portugueses para o pagamento da dívida, é risível. Não conheço as obras e também não conheço (creio que esse número não foi divulgado) o valor por que foram adquiridas pelo defunto banco. Era, aliás, uma coisa que importaria saber.

Penso, contudo, que leiloar um conjunto de 85 pinturas de um grande artista é um mau negócio. As obras valiosas devem ser progressivamente colocadas no mercado e não por atacado. Neste caso, a cotação desce. Também não compreendo a  necessidade de alienar todas as obras. Sendo o património museológico português escasso em arte contemporânea, mandaria o bom senso (se existisse) conservar as obras mais significativas nos museus nacionais. Poderiam depois leiloar-se internacionalmente as outras ou vendê-las a particulares portugueses com a obrigação de continuarem em solo nacional.

Seria, igualmente, interessante saber, em relação aos previsíveis valores de venda, quanto custariam as mesmas obras se na mesma altura o Estado quisesse adquiri-las. Poderia assim avaliar-se o interesse do negócio.

Há ainda o  mistério do envio dos quadros para Londres. Todo este negócio é uma embrulhada, idêntica a outras a que este Governo já nos habituou. Não devemos estranhar.

Finalmente, a obsessão, veiculada nos últimos dias, de mencionar que esta venda se destina a amortizar a dívida externa é caricata. Quem a invoca não se dá conta do ridículo. É o ridículo elevado a razão de Estado.

Os ingleses sabem do que falam.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

A UCRÂNIA NUMA ENCRUZILHADA DA HISTÓRIA




Os acontecimentos das últimas semanas na Ucrânia, nomeadamente em Kiev, suscitam as maiores interrogações quanto ao futuro do país. A contestação ao presidente Viktor Yanukovytch (de momento, doente, entretanto restabelecido), eleito em 2010, e ao seu governo (agora demissionário) assumiu progressivamente foros de insurreição popular, na sequência da escalada de protestos contra a não adesão à União Europeia, primeiro, e contra a corrupção do regime, depois.

Possui a Ucrânia uma história milenar, que remonta ao século X. O Principado de Kiev foi antecessor do Grão-Ducado da Moscóvia (e do Grão-Ducado da Lituânia) e as afinidades entre estes países, nos costumes, na religião, na língua foram sempre enormes. No século XIV o Principado foi conquistado pelo rei da Polónia e, devido a política de alianças, passou para o controle do Grão Ducado da Lituânia e, depois, para o da Polónia. A rebelião cossaca de 1648 levou à partilha do território entre a Rússia e a Polónia, e a partilha da Polónia, no final do século XVIII, conduziu à partilha da Ucrânia entre a Rússia, a Prússia e a Áustria. Após a Primeira Guerra Mundial, e várias peripécias políticas e militares, foi proclamada, em 1919, a República Socialista Soviética da Ucrânia, que, em 1922, passou a integrar a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Com o colapso da União Soviética, em 1991, o país adquiriu, de facto, a sua independência.

Deste percurso, acidentado, se conclui que sempre a Ucrânia teve, pela história e pela geografia, uma proximidade com a Rússia, que nunca partilhou duradouramente com qualquer outro país. E recorde-se, de passagem, que durante a vigência da URSS a Ucrânia tinha assento nas Nações Unidas, em pé de igualdade com aquela, facto que, dentro das repúblicas soviéticas, só tinha paralelo com a Bielo-Rússia.

A queda do regime socialista na Ucrânia e o estabelecimento de uma economia de mercado provocou (como nas outras repúblicas do Leste) um aumento súbito do custo de vida e a eliminação das regalias sociais de que gozavam os seus habitantes, produzindo uma pequeníssima classe de novos ricos (riquíssimos) e uma imensa classe de novos pobres (a maior parte, paupérrimos). E favoreceu a instalação no poder de elites corruptas, quiçá muito mais corruptas do que as que o ocupavam no regime socialista. Este empobrecimento da população gerou uma vaga massiva de emigrantes para os países ocidentais, sendo a comunidade ucraniana em Portugal um testemunho desse afluxo de cidadãos à procura de uma vida melhor.

Apesar do seu relacionamento ancestral com a Rússia, a parte mais russófila da Ucrânia é o leste do país, sendo o oeste, porque naturalmente mais próximo dos países que aderiram à União Europeia, mais permeável aos cantos de sereia de Bruxelas. Durante o regime soviético, os ucranianos, ainda que submetidos a um apertado controle político (mas quem realmente não lhe está sujeito, hoje, no chamado Mundo Ocidental?) gozavam do privilégio de terem emprego e reforma e casa, ensino, saúde e transportes gratuitos, para citar apenas algumas regalias. Coisas que não existem, ou estão progressivamente a desaparecer no "mundo livre", em nome da "democracia" (e dos mercados).

Aproveitando-se da insatisfação de muitos ucranianos, a União Europeia decidiu propor ao país a sua adesão, vendendo-lhe a miragem de uma vida subitamente melhor a partir do momento da integração. Não admira, pois, que uma parte da população, insatisfeita com a corrupção da classe dirigente e vivendo mal, se tenha insurgido contra a recusa de Yanukovytch em aceder às pretensões do inefável  Barroso e da obstinada Merkel. Não que pretendam cortar os laços com Moscovo mas porque julgam que a entrada na "Europa" lhes proporcionará o aumento do nível de vida. A maioria dos descontentes parece ignorar que as boas intenções da União Europeia e dos Estados Unidos (atente-se no encontro de John Kerry com a oposição ucraniana) não são gestos altruístas mas apenas a vontade de penetrar abertamente na economia ucraniana e de utilizar a posição estratégica do país, afastando-o da Rússia. Exactamente o que Putin procura evitar, já que Moscovo vê com maus olhos a instalação a sul do seu território de uma presença hostil, porventura de um país que se tornaria membro da NATO. Por outro lado, também o Kremlin tenta seduzir a Ucrânia com financiamentos e bens essenciais.

É neste contexto, aqui sucintamente exposto, que Viktor Yanukovytch terá de tomar posição. Ou se retira, como pretende a oposição, sendo convocadas eleições presidenciais, cujo desfecho se ignora, ou incumbe as forças armadas de "limpar" os locais ocupados, restabelecendo a ordem e a normalidade, já que a economia do país está paralisada. Qualquer das opções tem custos, para a Ucrânia e para a Rússia, mas parece-me que a retirada de Yanukovitch provocaria o caos interno.

Depois da Síria, a Ucrânia é um novo ponto de fricção entre a UN/EUA e a Rússia. Claro que não se espera uma intervenção armada ocidental, que seria uma catástrofe, mas os confrontos diplomáticos Oeste/Leste agudizam-se. Realmente, também ninguém esperava que o assassinato do arquiduque Francisco Fernando provocasse a Primeira Guerra Mundial ou que a ascenção de Hitler ao poder acabasse por desencader a Segunda.

A verdade é que, neste mundo globalizado, a Ucrânia está mais perto de nós do que muitos supõem. Mesmo um conflito no interior do país, que seria certamente alimentado do exterior, de um e outro lado, seria trágico para a Europa, pelas suas consequências externas. Já bastou a guerra na ex-Jugoslávia.

Por isso, tenhamos esperança se não numa solução óptima, pelo menos numa solução razoável. Aguardemos.

domingo, 2 de fevereiro de 2014

A LITERATURA E A VIDA




Foi agora editado em DVD no nosso país o filme Dans la maison, de François Ozon, produzido em 2012 e estreado no cinema o ano passado.

Resumo da estória: um rapaz de dezasseis anos que pretende penetrar na casa de um colega da sua turma de literatura, insinua-se junto deste com o pretexto de lhe dar explicações de matemática e acaba por ser admitido e frequentar a residência, confraternizando com o amigo e os pais. E começa a escrever os relatos dessas visitas para o seu professor de francês que o estimula nas suas redacções, admirado com a as capacidades de um aluno tão dotado e invulgar. O próprio professor ganha um novo entusiasmo pela actividade de docente. Mas a intrusão do rapaz naquela casa ("há sempre forma de entrar numa casa") vai desencadear uma série de acontecimentos incontroláveis.



No fim, a família do colega muda-se para a China, o professor é despedido do liceu e abandonado pela mulher e o rapaz vai reencontrá-lo no jardim do que é suposto ser um asilo para pessoas desvalidas.

Com o seu habitual talento, François Ozon descreve o percurso singular deste jovem e também o do professor, sendo as restantes personagens o contraponto que permite elaborar a estória. Claro que o realizador deixa à perspicácia do espectador a compreensão profunda do conflito, apenas sugerido, um não-dito em que Ozon é mestre.


O argumento do filme é extraído da peça El chico de la última fila, do espanhol Juan Mayorga, publicada em 2008, e que obteve assinalável sucesso.
 

Salientem-se as notáveis interpetações de Fabrice Luchini, no papel do professor e de Ernst Umhauer, no do rapaz, que, já com 23 anos, consegue aparentar perfeitamente os 16 do protagonista.