sábado, 13 de janeiro de 2018

A SERVIDÃO VOLUNTÁRIA


Étienne de La Boétie (estátua em Sarlat, onde nasceu)

Étienne de La Boétie (1530-1563), foi um filósofo e humanista francês, que morreu aos 32 anos, deixando uma reduzida obra literária: algumas traduções de obras greco-romanas e alguns textos originais. Todavia, entre os poucos livros que nos legou figura um que o tornaria célebre: o Discours de la servitude volontaire (Discurso sobre a Servidão Voluntária), escrito quando teria 18 anos e frequentava a Universidade de Orléans.

A este pequeno texto, tornado um clássico do pensamento filosófico, há a acrescentar a profunda amizade que por ele nutriu Michel de Montaigne (1533-1592), o famoso autor dos Essais. Tão íntima, que muitos aventam que ela possa ter consistido mesmo numa relação sexual.

A tese de La Boétie, exprimindo um pensamento radical que prefigura uma esquerda libertária, é muito simples: para não sofrer o poder de um tirano, basta não lho conceder (Soyez résolus de ne servir plus, et vous voilà libres).


Vem isto a propósito de um artigo que o filósofo francês Michel Onfray lhe dedicou no nº 1 (Janeiro de 2018) do "Nouveau Magazine Littéraire". Escreve Onfray sobre esta tese verdadeiramente original e pacificamente revolucionária: «Rien ne sert activement de combattre le tyran, qui n'est pas tant un homme que l'instance que détient le pouvoir, il suffit de ne plus lui donner sa soumission. Autrement dit, se rebeller sans violence: ne plus soutenir ce qui, dès lors, tombera naturellement.»

E referindo-se à sociedade actual, acrescenta: «Nul doute qu'aujourd'hui La Boétie ajouterait le cirque médiatique et la tyrannie des écrans, la dictature de la télévision, avec les chaînes d'information en continu ou les soirées dites de divertissement, la prolifération du cinéma comme art de faire du vraisemblable avec du faux, celles des séries télévisées qui font la même chose en moins bien, le tourisme de masse et le loisir généralisé, les fêtes obligatoires et les coupes du monde de football, sinon les Jeux Olympiques et autres façons de tenir le peuple en respect par le divertissement - au sens pascalien du terme. Ensuite, La Boétie précise que l'hédonisme - il n'utilise pas le mot mais renvoie à l'idée - fait également partie des techniques d'assujetissement: la multiplication des festins et des réjouissances, le goût des tableaux et les distinctions honorifiques, et autres "drogueries", fournissent autant d'occasions créées par le roi de faire en sorte que ses sujets regardent ailleurs et ne voient pas ce qui se passe réellement... À l'évidence, il faut voir dans cette énumération l'ébauche de ce qui deviendra au XXe siècle la société de consommation avec son éloge de tout ce qui flatte l'égotisme et le narcissisme: citations de La Boétie, la célébration de la cuisine et la religion de la gastronomie, la palinodie de l'art contemporain et la passion des décorations épinglées au revers de vestons des gens importants, mais aussi - ajouts post-La Boétie - la société de zombies perfusés aux anxiolytiques, au tabac, aux drogues douces et dures, les doudous pour adultes, du téléphone portable aux objects connectés - l' iCloud est aujourd'hui l'athanor dans lequel se cuisinent les prochaines tyrannies planétaires...»

No seu longo artigo, Onfray desenvolve o pensamento de La Boétie, considera-o, com Diógenes como grande antepassado e Rabelais como arquitecto da abadia de Thélème, um dos precursores da anarquia. Antes de morrer, La Boétie legou a Montaigne toda a sua obra, tendo o autor dos Essais passado quase vinte anos para editar o Discours, de forma a enquadrá-lo politicamente, uma vez que em França vigorava a Monarquia Absoluta. Entretanto, foi ultrapassado por edições piratas feitas por huguenotes menos escrupulosos.



Foi em intenção do seu amigo Étienne que Montaigne escreveu o capítulo 28 (De L'Amitié), do volume I dos seus Essais, onde disserta longamente sobre a amizade que o ligava a La Boétie: «Au demeurant, ce que nous appelons ordinairement amis et amitié, ce ne sont qu’accointances et familiarités nouées par quelque occasion ou commodité, par le moyen de laquelle nos âmes s’entretiennent. En l’amitié dont je parle, elles se mêlent et se confondent l’une en l’autre, d’un mélange si universel, qu’elles effacent, et ne retrouvent plus la couture qui les a jointes. Si on me presse de dire pourquoi je l’aimais, je sens que cela ne se peut exprimer qu’en répondant : "Parce que  c’était lui, parce que c’était moi."»


Importa aqui notar uma semelhança com outra obra, talvez menos conhecida, e a que Tolstoï se refere no seu "Apelo aos homens políticos". Escreve o autor de Guerra e Paz: «...um escritor americano pouco conhecido conta como recusou pagar ao governo americano um dólar de imposto» porque não queria «participar nas obras de um governo que autoriza a escravatura.». O escritor americano a que Tolstoï se refere é nem mais nem menos que Henry David Thoreau, autor da Civil disobedience (1849). Este tratado sobre A desobediência civil tem uma evidente filiação na obra de La Boétie, na medida em que partilham a ideia de um governo assente no consentimento popular. Ou mesmo na ausência de um governo, uma proposta evidentemente utópica, mas devemos considerar que Thoreau se referia especialmente aos Estados Unidos e ao período das guerras travadas internamente ou contra os mexicanos.

Thoreau conclui o seu livro interrogando-se se a democracia, tal como a conhecemos [no seu tempo, e hoje por maioria de razão] será o último progresso possível em matéria de governo. E prossegue, perguntando se não será possível avançar mais um passo no reconhecimento e organização dos direitos do homem. «Nenhum Estado será verdadeiramente livre e esclarecido enquanto não reconhecer o indivíduo como o poder mais alto e independente, no qual têm origem todo o seu próprio poder e autoridade, tratando-o correspondentemente.» (Tradução da edição portuguesa).

Voltando a Onfray: «À l'origine, donc, dans l'hypothèse d'un état de nature, les hommes sont libres et aiment la liberté. La servitude est une affaire de culture, d'acquisition. Les hommes naissent libres et deviennent serfs. ... La Boétie ne méprise pas les personnes ou les peuples assujettis, parce qu'ils les comprend. Quand on a jamais connu la liberté et que l'on a vécu que dans la servitude, comment pourrait-on avoir l'idée même qu'on puisse se désassujettir? ... Le jeune auteur du Discours ne compose pas son texte comme un exercice de rhétorique afin de montrer à son lecteur qu'il sait briller en casuistique, ce que Montaigne, effrayé par la puissance subversive d'un pareil texte, aimerait qu'on croie, mais il veut que sa pensée soi suivi d'une pratique. Et sa pratique, c'est tout une politique. La Boétie donne le mode d'emploi de la destruction de tout pouvoir quand il est tyrannique, arbitraire, autocrate, despotique: il suffit à ceux qui le subissent de ne plus vouloir le subir et d'éviter de le rendre possible. D'où l'intérêt de la généalogie qui est une dynamite.»

Muito haveria a dizer sobre a matéria, a começar pela diferença de cinco séculos que nos separam de La Boétie, e pela existência de um mundo global e digitalizado como o que hoje, infelizmente, temos. Mas, mesmo no século XVI, as coisas não eram assim tão simples, e Montaigne protelou a divulgação do Discours de La Boétie para preservar a sua memória, em nome da amizade que os ligava, pois as considerações do humanista de Sarlat eram altamente subversivas, ainda que reservando-lhe a classificação de utópicas. Por essa época, Thomas Morus, o famoso autor da Utopia, era executado, nesse paraíso da liberdade e da democracia que é a Inglaterra. O que não significa que, como exercício académico, devamos revisitar La Boétie ou mesmo Thoreau, pois das suas contribuições sempre poderemos colher ensinamentos úteis.

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