domingo, 7 de janeiro de 2018

OS CAFÉS LITERÁRIOS





Foi publicada há meses, mas só agora tive tempo de começar a lê-la, a reedição do livro Les Cafés Littéraires, de Gérard-Georges Lemaire, um profundo conhecedor da matéria, do qual possuo também L'Europe des cafés (1991) e Cafés d'autrefois (2000). O autor, infatigável viajante, nutre um especial interesse pela instituição "café", originária do mundo turco-árabe e que penetrou na Europa a partir do cerco de Viena de 1683, período em que no Santo Império foi também divulgado esse delicioso bolo que ainda hoje comemos em todo o mundo: o croissant (crescente).

Na Europa, os cafés foram os cadinhos da cultura moderna, das teorias literárias, dos movimentos artísticos mais inovadores, das metamorfoses do teatro e da música, dos grandes combates da filosofia e da crítica, das utopias e das causas perdidas, das grandes ilusões políticas e das revoluções. A seu respeito, pode afirmar-se que, durante quatro séculos, constituíram as academias da liberdade de pensamento.

Assistimos hoje à decadência dos cafés um pouco por todo o mundo. Portugal não é excepção. Perante a globalização por ora ainda triunfante, o monoteísmo de mercado e o culto do dinheiro ao qual as sociedades contemporâneas quase exclusivamente sacrificam, o café deixou de ser rentável, pior, tornou-se perigoso, porque sendo lugar de discussão de ideias, arriscava converter-se num espaço em que fosse interrogada a verdade do "pensamento único".

Os cafés foram também sítio de reunião de estudantes, que, durante décadas, os utilizaram, ao preço de uma bica, para, sozinhos ou acompanhados, se debruçarem sobre as matérias que deveriam conhecer. Mais, muitos cafés serviram também como lugares de "engate", quer entre os frequentadores habituais, quer para os jovens que não estudando, não escrevendo, não discutindo ideias, ali se deslocavam para oferecer os seus corpos a quem estivesse interessado, a troco de uma remuneração mais ou menos simbólica, a justificar "moralmente" os serviços prestados. 

Um pouco por toda a parte, os cafés vão sucessivamente encerrando portas, para dar lugar a outros comércios mais lucrativos, conservando-se alguns ainda abertos, já não para satisfação dos antigos clientes mas para gáudio dos turistas que, ao frequentá-los, julgam encontrar resquícios de uma atmosfera desaparecida, de que só restam, na verdade, as paredes, por vezes já transformadas, desses templos de plural convívio que animaram gerações de novos e de velhos e largamente contribuíram para a difusão cultural.

Fui um frequentador quase diário de cafés e vi com profundo desgosto o seu sucessivo desaparecimento. Neles estudei, neles encontrei amigos de estudo e não só, neles li e escrevi, neles discuti artes e letras, e mesmo política, numa palavra, neles vivi uma parte da minha vida. Quando comecei a frequentá-los, alguns, que a literatura refere, tinham já desaparecido, mas recordo com saudade o Chiado, o Nacional, o Monte Carlo, o Monumental, o Gelo, a Brasileira (a do Chiado e a do Rossio), o Nicola, o Martinho (o do Rossio e o da Arcada), o Chave d'Ouro, o Portugal, o Palladium, o Lisboa, e outros que agora me escapam. Destes, quatro restam abertos (descaracterizados) para júbilo das hordas ululantes de turistas que, verdadeiramente ignorantes do passado das cidades, cruzam por estes dias os quatro continentes, conduzidas por guias que nada sabem das histórias locais (e, mesmo que soubessem, quem os compreenderia), fotografando com os seus telemóveis tudo o que julgam poder mostrar aos seus conterrâneos ou publicar nas redes sociais, fotografias que os próprios mais tarde nem sequer verão e, caso as vejam, não saberão identificar.

Voltando ao livro em apreço, Lemaire fala-nos dos cafés do Oriente, dos de Paris, especialmente, e dos de Itália, Inglaterra, Espanha, Portugal, Bélgica, Alemanha, Suiça, Áustria, República Checa, Hungria, Polónia, Roménia, Jugoslávia, Bulgária, Rússia e Países-Baixos. Com mais de 600 páginas e profusamente ilustrado, não é possível dar aqui conta do conteúdo. Direi que, relativamente a Portugal, são citados o Martinho do Rossio e o da Arcada, o Marrare (que já não conheci) a Brasileira do Rossio e a do Chiado, o Nicola, etc.

Nas minhas digressões pelo estrangeiros, tento sempre frequentar os cafés que foram célebres (alguns ainda mantêm as características originais) e recolher uma réstia do espírito da época em que cumpriram exemplarmente a sua função.

Com tempo e paciência, voltarei a falar sobre cafés. Para já, deixo aqui as capas de alguns livros aos mesmos dedicados:







Café Slavia, em Praga






Não me recordo de todos os cafés que frequentei no estrangeiro, mas lembro-me de uma dúzia: La Paix, Flore, Deux Magots, Procope, St. André-des-Arts, Coupole, em Paris; Quaddri e Florian, em Veneza; Gerbeaud e New York, em Budapeste; Fishawi, Riche e Groppius, no Cairo; Elite, em Alexandria; Paris, em Tunis; De France, em Casablanca; Central, Hawelka, Landtmann e Museum, em Viena; em Berlim, um na Unter den Linden e outro na Friedrichstrasse; em Belgrado, dois óptimos no Largo do Museu Nacional e da Ópera; o Literary, na Nevski Prospect, em São Petersburgo; o Slavia, o Kafka e o da Obecni Dum, em Praga; e muitos outros cujos nomes não me ocorrem, designadamente em Atenas, Sofia e Bucareste.

Como gostaria de voltar!

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